1.2

O regime jurídico dos contratos internacionais

Necessidade da sua harmonização 

Desde muito cedo se percebeu que a promoção e o desenvolvimento do comércio internacional passaria, necessariamente, pela harmonização da disciplina jurídica dos contratos internacionais, ou seja, pela unificação, ao menos parcial, das regras jurídicas a que os negócios internacionais deverão submeter-se.
Bem se compreende porquê. Às dificuldades anteriormente referidas acresce a que resulta da diversidade dos regimes jurídicos potencialmente aplicáveis e das próprias regras que presidem à determinação da lei que, em última análise, deverá reger o contrato. Tal diversidade constitui, sem dúvida (mais) um poderoso obstáculo que os agentes económicos têm de enfrentar quando decidem expandir os seus negócios além-fronteiras.
Os esforços de unificação têm sido conduzidos por diversas organizações internacionais, designadamente, por organismos especializados das Nações Unidas, conferências diplomáticas e institutos internacionais. Todavia, não se regista unanimidade de pontos de vista acerca da melhor forma de os fazer frutificar. Além disso, os resultados alcançados estão longe de se poderem considerar satisfatórios. 

Os instrumentos da harmonização 

São de variada índole os instrumentos jurídicos que têm sido utilizados para lograr o objectivo de unificação do direito dos contratos internacionais. Diversos são também os planos em que se tem procurado obter a harmonização.
Começando por este último aspecto, cumpre observar que tanto se têm empreendido esforços no sentido da unificação de, pelo menos, algumas áreas do direito material dos contratos, como se têm adoptado iniciativas tendentes à harmonização (ao menos parcial) do chamado direito internacional privado, plano em que se busca, sobretudo, a criação de regras de conflitos uniformes.
De um outro ponto de vista, podem-se dividir as experiências até agora empreendidas em tentativas de carácter genérico e de âmbito específico. As primeiras incidem sobre o direito comum dos contratos, intentando compendiar os princípios e as regras aplicáveis à generalidade dos contratos; as segundas versam sobre aspectos determinados da disciplina contratual ou sobre um tipo particular de contrato.
No que toca aos instrumentos da unificação, umas vezes opta-se pela adopção de instrumentos de carácter vinculativo, ou seja, de instrumentos que visam a criação de verdadeiras regras jurídicas supranacionais, obrigatórias para os Estados que os subscrevem, outras vezes busca-se a uniformização através de instrumentos não adstringentes, que instituem simples modelos de regulação destinados a servir de guia aos legisladores nacionais.
De entre os instrumentos vinculativos, destacam-se, naturalmente, os que têm origem em instituições supranacionais com competência para impor a adopção de legislação uniforme (como sucede com os actos obrigatórios das instituições da União Europeia) e as convenções internacionais. Trata-se, neste último caso, de acordos negociados entre representantes de diversos Estados, que se tornam obrigatórios para aqueles que os ratifiquem ou a eles adiram. Deles emergem, por conseguinte, compromissos ou obrigações internacionais para os Estados que aceitem vincular-se. Inserem-se nesta linha, por exemplo, a Convenção sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 (a que adiante faremos detida alusão), a Convenção sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e à Representação, concluída na Haia em 14 de Março de 1978, e a Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, aprovada em Viena em 11 de Abril de 1980.
No pólo oposto encontram-se as Regras Uniformes ou os Princípios Uniformes, que são compilações de regras e princípios geralmente seguidos nas diversas ordens jurídicas, promovidas por instituições internacionais, para as quais os agentes económicos poderão remeter nos acordos que subscrevam, assim aceitando a submissão de tais acordos aos modelos normativos proporcionados por elas. Poderão citar-se, neste contexto, os “Princípios Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais”, elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit), recentemente publicados em língua portuguesa. Trata-se de um corpo muito completo de regras gerais aplicáveis aos contratos internacionais, cobrindo praticamente todos os aspectos da disciplina contratual. Uma outra manifestação da mesma ideia são as “Regras Uniformes relativas às cláusulas contratuais estipulando o pagamento de uma quantia em caso de incumprimento”, aprovadas pela Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (CNUDCI) em Maio/Junho de 1983.
A meio caminho entre os dois tipos de instrumentos que ficam referidos situam-se as chamadas Leis-Modelo. Como o nome sugere, estão agora em causa instrumentos que, não constituindo embora uma autêntica fonte de direito internacional, posto não visarem a criação de regras jurídicas com eficácia directa – ao contrário do que acontece com as convenções internacionais –, pretendem criar um modelo legislativo que é oferecido ou proposto aos Estados para adopção pelas respectivas ordens jurídicas. Serve de exemplo a “Lei-Modelo sobre a Arbitragem Comercial Internacional”, aprovada pela CNUDCI em 21 de Junho de 1985.
Num plano muito diverso dos até agora analisados, mas que tem manifesto interesse referir nesta sede, situam-se as iniciativas de algumas organizações profissionais ou empresariais traduzidas na elaboração de modelos contratuais uniformes, destinados a servir de base à contratação em que intervenham empresários (nelas filiados ou não) e que consagram estipulações ditadas pela prática comercial internacional. A título de exemplo pode citar-se o “modelo de contrato de agência comercial” preparado sob os auspícios da Câmara de Comércio Internacional (CCI). Todavia, nem sempre tais iniciativas redundam na proposição de um inteiro e concluso modelo de contrato, cingindo-se, por vezes, à elaboração de cláusulas-tipo que visam aspectos específicos das transacções internacionais.
Apresenta alguns pontos de contacto com estas iniciativas a experiência de uniformização da terminologia empregue em contratos internacionais, prosseguida nalguns areópagos internacionais. O exemplo mais relevante são os Incoterms (International Commercial Terms) elaborados pela CCI, cuja edição mais recente data do ano 2000. Trata-se de um repositório de termos e siglas usadas no comércio internacional, contendo a definição das obrigações associadas (v.g. CIF – “Cost, Insurance and Freight”, FOB – “Free on Board”, EXW – “Ex-Works”, etc.).
Estes dois tipos de iniciativas inscrevem-se numa tendência que propende para a codificação dos usos e práticas internacionais, integrando o “common core” daquilo a que se convencionou chamar lex mercatoria ou new merchant Law: um direito corporativo de base consuetudinária, integrado pelos costumes revelados pela própria prática internacional, sobre cuja vigência e jurisdicidade existem opiniões muito díspares. 

o panorama actual 

Numa síntese conclusiva, pode afirmar-se com alguma segurança que, apesar dos intensos esforço desenvolvidos pela comunidade internacional para aplanar as numerosas incertezas que afectam o regime jurídico dos contratos internacionais, o resultado das experiências até agora conduzidas está longe de se poder considerar satisfatório. Na verdade, mau grado o relativo êxito de algumas delas, certo é que tais experiências não redundaram na criação de um autêntico direito uniforme dos contratos, tendo até, em alguns casos, contribuído para uma maior incerteza e complexidade, pela multiplicação dos expedientes utilizados e dos instrumentos adoptados.
O ponto de partida para a determinação do regime jurídico dos contratos internacionais reside, ainda hoje, nas regras de conflitos em vigor em cada Estado, não obstante estas últimas provirem, por vezes, de convenções internacionais de unificação do direito internacional privado. Assim sendo, fora das hipóteses que são submetidas a arbitragem, os tribunais de cada Estado recorrem primacialmente às regras de conflitos que nesse mesmo Estado vigoram para a apreciação dos litígios suscitados pela interpretação e execução dos contratos internacionais. Regras essas que, consoante anteriormente se observou, nos indicam a lei, o ordenamento jurídico a que competirá dar resposta aos referidos problemas.
No nosso país, as regras de conflitos que a este respeito vigoram são, basicamente, as oriundas da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais. Convirá, por isso, que conheçamos um pouco melhor o regime instituído por esta Convenção.

 

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
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