3.2
Os modos de resolução dos litígios internacionais

São duas, à partida, as vias de resolução que se oferecem às partes.
Uma primeira consiste em submeter o litígio aos tribunais de determinado Estado, ou seja, aos mesmos tribunais a que usualmente se recorre para dirimir os litígios que surjam dentro das fronteiras desse Estado. Trata-se, deste modo, de recorrer às instâncias jurisdicionais de índole estadual, aos tribunais que se encontram integrados na organização judiciária de um Estado.
A outra via traduz-se em recorrer à arbitragem, solução que é também comummente seguida para a resolução de litígios puramente internos e que vem ganhando terreno nos últimos anos, mercê das vantagens que pode oferecer, especialmente na apreciação de litígios internacionais. Trata-se, agora, de submeter a resolução dos diferendos a tribunais “privados”, não integrados em qualquer estrutura judiciária estadual e que são compostos por juízes que não exercem profissionalmente essa função (juízes “não togados”) ou que, pelo menos, não intervêm nessa qualidade.
Poder-se-ia pensar numa terceira via de solução: o recurso a tribunais internacionais, ou seja, a tribunais que não pertençam a nenhuma ordem jurisdicional estadual, não dependendo, por isso, de nenhum Estado em particular. Trata-se, em suma, de tribunais supranacionais, geralmente instituídos por tratado ou convenção internacional celebrada entre diversos Estados ou criados no âmbito de organizações internacionais, igualmente instituídas por esse modo. Todavia, tal solução só raramente se mostra disponível, ou porque os tribunais que revestem esta natureza não têm competência para dirimir litígios entre meros particulares, ou porque, na maior parte dos casos, constituem uma última instância de recurso a que as partes só poderão dirigir-se após esgotarem outras vias jurisdicionais. E mesmo quando isso se mostra possível, os referidos tribunais limitam-se, normalmente, a apreciar aspectos muito específicos do litígio.

Os problemas suscitados pelo recurso aos tribunais estaduais

O recurso aos tribunais estaduais para a resolução de litígios com carácter internacional levanta problemas jurídicos delicados; o primeiro dos quais consiste em seleccionar, de entre todos os tribunais que se encontrem integrados em sistemas jurídicos que apresentem conexão relevante com o caso, aqueles a que o litígio deve ser submetido. São os denominados conflitos de jurisdições, em sentido estrito.

A determinação do tribunal competente

Como sempre acontece, a adjudicação de competência aos tribunais integrados em ordens judiciárias estatuais obedece a regras jurídicas. Idealmente, deveria haver regras ou, pelo menos, princípios comuns a todos os Estados, que viabilizassem uma distribuição uniforme da competência entre os tribunais de todos eles para a apreciação dos litígios que tenham contacto com mais de uma rodem jurídica. Mas não é isso que, na realidade, se verifica. Tais regras comuns não existem, de facto, muito embora se registe algum consenso em torno de certos princípios fundamentais.
Deste modo, a competência internacional dos tribunais de cada Estado – a medida da respectiva jurisdição – é, essencialmente, definida por regras do seu próprio direito interno. Ou seja, cada país determina, unilateralmente, quando e em que casos os seus próprios tribunais são chamados a resolver litígios internacionais. Fá-lo através das chamadas regras de conflitos de jurisdições, as quais apenas cuidam de delimitar a competência internacional dos tribunais locais, abstendo-se de atribuir competência a tribunais que não se integrem na sua própria organização judiciária.
As regras de conflitos de jurisdições (ou regras de competência internacional) estabelecem os critérios de atribuição de competência aos tribunais do Estado que as edita, critérios esses que atendem, geralmente, à relação de proximidade existente entre o caso a decidir e os tribunais locais.
Existem, no entanto, algumas tentativas bem sucedidas de uniformização das regras de conflitos de jurisdições mediante tratado internacional, ou seja, situações em que, pelo menos, dois Estados acordam na adopção de regras comuns de repartição da competência internacional entre os seus tribunais.
De entre tais tentativas merecem particular destaque duas convenções internacionais a que Portugal se encontra vinculado: a Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Bruxelas em 27 de Setembro de 1968 (Convenção de Bruxelas), e a convenção “paralela” celebrada em Lugano em 16 de Dezembro de 1988 (Convenção de Lugano).
A primeira foi inicialmente concluída entre os originários Estados membros da Comunidade Económica Europeia, em cumprimento do artigo 220.º do Tratado de Roma (que instituiu a CEE). O seu texto veio depois a ser modificado pelas sucessivas Convenções de Adesão dos Estados que posteriormente acederam àquela organização. É complementada por um Protocolo relativo à interpretação da Convenção pelo Tribunal de Justiça, assinado no Luxemburgo em 3 de Junho de 1971, cujo texto foi também modificado pelas sucessivas Convenções de Adesão e que atribui competência àquele Tribunal para decidir sobre a interpretação das disposições da Convenção, a pedido dos tribunais dos Estados Contratantes.
A Convenção de Lugano, cujo texto é muito similar ao da Convenção de Bruxelas (e daí que seja comummente referida como “convenção paralela”), destinou-se, essencialmente, a permitir a extensão dos benefícios da Convenção de Bruxelas aos países da EFTA.
Observe-se aqui que, no seu específico campo de aplicação, as disposições das convenções a que vimos de aludir prevalecem sobre as regras homólogas do direito interno português. Por conseguinte, sempre que se verifique uma hipótese que se integre no âmbito de aplicação daqueles textos internacionais, é às respectivas disposições que os tribunais dos Estados contratantes deverão recorrer para determinar a sua própria competência. 

Síntese do regime de competência instituído pelas Convenções de Bruxelas e de Lugano

Como se assinalou, os textos de ambas as Convenções apresentam um notável paralelismo, muito embora não sejam absolutamente idênticos. Porém, no que respeita à delimitação da competência jurisdicional, as diferenças que exibem são mínimas. De resto, a Convenção de Bruxelas apresenta uma certa primazia sobre a de Lugano, por isso que esta última não prejudica a aplicação dos preceitos daquela nos Estados comunitários (cfr. artigo 54.º-B, n.º 1, da Convenção de Lugano). Daí que, na exposição subsequente, nos limitemos a sumariar o regime da Convenção de Bruxelas.

a) Âmbito de aplicação do regime convencional

Convirá iniciar tal exposição por uma breve referência ao âmbito de aplicação das disposições da Convenção de Bruxelas.
Em primeiro lugar, a Convenção aplica-se apenas em matéria civil e comercial, seja qual for a natureza da jurisdição chamada a resolver o caso (artigo 1.º, § 1.º). Ficam, por isso, excluídas as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas. Mas ficam também de fora do âmbito de aplicação material da Convenção determinadas áreas que, na obstante se enquadrarem no conceito de “matéria civil e comercial”, segundo a concepção dos direitos europeus continentais, são expressamente excluídas (cfr. artigo 1.º, § 2.º). De entre tais matérias, apresentam especial interesse para o comércio internacional, a definição do estado e da capacidade das pessoas singulares, as falências, concordatas e outros processos análogos, a segurança social e a arbitragem.
Do ponto de vista geográfico-espacial, a Convenção só é naturalmente aplicável nos Estados partes. Todavia, importa acrescentar que o regime convencional de competência internacional só é plenamente aplicável quando o réu se encontre domiciliado num Estado contratante (cfr. artigos 2.º, § 1.º, 3.º, § 1.º, e 4.º, § 1.º) ou tenha aí a sua sede (cfr. art. 53.º). Mas, para esse efeito, não releva a sua nacionalidade, pois, mesmo que o réu não seja nacional de um dos Estados contratantes, a Convenção aplica-se desde que ele se encontre domiciliado num desses Estados.
Quanto ao âmbito temporal de aplicação, em princípio, os critérios estabelecidos pela Convenção só valem para acções judiciais intentadas após a sua entrada em vigor no Estado cujos tribunais são chamados a conhecer do litígio.

b) As regras de competência internacional

Posto isto, vejamos então, a traços largos, o sistema de competência jurisdicional introduzido pela Convenção.
A regra geral é a de que o réu domiciliado num Estado contratante deve ser demandado, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse mesmo Estado (artigo 2.º, § 1.º). Consagra-se, deste modo, o princípio actor sequitur forum rei, que merece o acolhimento da generalidade das ordens jurídicas (incluindo do direito português vigente – cfr. infra).
Para saber se o demandado tem ou não domicílio no território do Estado contratante a que é submetido o litígio, o juiz deverá aplicar a sua lei interna (artigo 52.º, § 1.º). Tratando-se de uma sociedade ou de uma pessoa colectiva, considera-se que tem domicílio no lugar da respectiva sede (artigo 53.º, § 1.º).
Se o réu não se encontrar domiciliado num Estado contratante, em princípio a Convenção não se aplica e o tribunal competente será determinado, em cada Estado parte, por aplicação do seu próprio direito interno (artigo 4.º, § 1.º).
A par da regra geral acima enunciada, a Convenção consagra regras especiais de competência. Tais regras podem ser de dois tipos. Algumas delas limitam-se a estabelecer competências concorrentes com a que decorre da regra geral, ou seja, o interessado pode optar entre propor a acção junto dos tribunais do domicílio do requerido, seguindo a regra geral, ou intentá-la nos tribunais que sejam indicados pelo critério especial.
Outras criam um sistema de competências autónomo e fechado, tendo em vista a protecção de certas categorias de pessoas que se encontram em posição mais débil, no contexto de uma relação jurídica.
Pertencem à primeira categoria as disposições do artigo 5.º, onde se prevê, por exemplo, que o requerido com domicílio num Estado contratante possa ser demandado:

·       em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou devia ser cumprida, sendo que, em matéria de contrato individual de trabalho, esse lugar é aquele em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho (n.º 1);

·       em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto causador dos danos (n.º 3);

·       tratando-se de um litígio relativo à exploração de uma sucursal, de uma agência ou de qualquer outro estabelecimento, perante o tribunal do lugar da sua situação (n.º 5);

·       se se tratar de um litígio relativo a reclamação sobre remuneração devida por assistência ou salvamento de que tenha beneficiado uma carga ou um frete, perante o tribunal em cuja jurisdição essa carga ou o respectivo frete tenha sido arrestado para garantir esse pagamento ou poderia tê-lo sido se não tivesse sido prestada caução ou outra garantia (n.º 7).

No grupo das regras de competência protectivas da parte mais fraca incluem-se as relativas à matéria dos seguros e aos contratos celebrados por consumidores.
No primeiro caso, a Convenção estabelece uma nítida diferenciação entre as hipóteses em que o demandado seja o segurador e aquelas em que é este a propor a acção.
Assim, sendo o segurador o demandado, mau grado se aplique a regra geral da competência dos tribunais do Estado onde aquele estiver domiciliado (artigo 8.º, § 1.º, 1), a Convenção confere à parte presumivelmente mais fraca (o tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário) diversas possibilidades alternativas. Desde logo, o tomador do seguro pode optar por recorrer aos tribunais do lugar onde estiver domiciliado (artigo 8.º, § 1.º, 2 – forum actoris). Mas se estiver em causa um seguro de responsabilidade civil, um seguro que tenha por objecto bens imóveis, ou um seguro que incida simultaneamente sobre bens imóveis e móveis cobertos pela mesma apólice e atingidos pelo mesmo sinistro, o segurador pode também ser demandado perante o tribunal onde o facto danoso ocorreu (artigo 9.º). Além disso, em matéria de seguros de responsabilidade civil, o segurador pode também ser chamado perante o tribunal onde for proposta a acção do lesado contra o segurado, desde que a lei desse país assim o permita (artigo 10.º, § 1.º).
Caso seja o segurador a intentar a acção, este não tem outra alternativa que não seja propo-la perante os tribunais do Estado contratante em cujo território estiver domiciliado o requerido, quer este seja o tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário (artigo 11.º, § 1.º).
No que toca aos conflitos de consumo, o sistema é de algum modo análogo. Na verdade, enquanto o consumidor pode intentar uma acção, quer perante os tribunais do Estado onde se encontre domiciliada a outra parte, quer junto dos tribunais do Estado em cujo território ele próprio (consumidor) estiver domiciliado (artigo 14.º, § 1.º), a outra parte no contrato só pode intentar uma acção contra o consumidor perante os tribunais do Estado do domicílio do consumidor (artigo 14.º, § 1.º).
Registe-se, ainda, que em ambos os casos (ou seja, tanto em matéria de seguros como no domínio dos conflitos de consumo) a Convenção, com o objectivo de assegurar a protecção da parte mais fraca, estabelece ficções de domicílio do segurador e do co-contratante do consumidor, na medida em que os considera domiciliados no Estado contratante em que possuam sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento, quanto aos litígios relativos à exploração de tais formas de representação, mesmo que eles não tenham sede no território de um Estado contratante (cfr. os artigos 8.º, § 2.º, e 13.º, § 2.º). De igual modo, em ambos os domínios se verificam importantes restrições à admissibilidade dos pactos de jurisdição (cfr. artigos 12.º e 15.º), situação que também ocorre em matéria de contrato individual de trabalho (artigo 17.º, § 6.º).
Ora, a este respeito cumpre precisamente referir que a maior parte das regras de competência estabelecidas pela Convenção pode ser afastada pela vontade das partes. Quer isto dizer que a Convenção admite com largueza os chamados pactos atributivos de jurisdição, ou seja, convenções através das quais as partes acordam em atribuir competência aos tribunais de determinado Estado contratante para decidir os litígios que decorram de certa relação jurídica (artigo 17.º). E ficciona mesmo a existência de um pacto sobre competência sempre que uma parte compareça perante um tribunal sem arguir a respectiva incompetência (artigo 18.º). Considera-se, nestes casos, que a parte que compareceu aceitou tacitamente a competência do tribunal onde foi intentada a acção.
As convenções sobre competência, para além de se encontrarem sujeitas às restrições que acima se assinalaram, a respeito dos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, também não são admissíveis se os tribunais cuja competência for por elas afastada tiverem competência exclusiva, nos termos do artigo 16.º. Este preceito estabelece, na verdade, os casos de competência exclusiva dos tribunais de um Estado contraente, competência essa que é válida seja qual for o domicílio do demandado e que prevalece sobre a que decorre das regras gerais e especiais anteriormente analisadas. Quer isto dizer que se trata de hipóteses em que a jurisdição fica apenas reservada aos tribunais designados pelas regras de competência exclusiva. De entre elas, permitimo-nos destacar a atribuição de competência exclusiva aos tribunais do Estado contratante:

·       onde um imóvel se encontre localizado, para apreciar os litígios referentes aos direitos reais (propriedade, usufruto, etc.) sobre esse imóvel ou ao respectivo arrendamento;

·       onde se situe a sede de uma sociedade ou outra pessoa colectiva, para conhecer dos problemas relativos à validade e dissolução da mesma, assim como os atinentes às decisões dos seus órgãos;

·       onde tiver sido requerido ou efectuado o depósito ou o registo, em matéria de inscrição ou de validade de patentes, marcas, desenhos, modelos e outros direitos análogos, sujeitos a depósito ou a registo.

Em princípio, considera-se que também goza de competência exclusiva o tribunal que for designado por acordo das partes.
Para completar o esboço do sistema de competência instituído pela Convenção de Bruxelas, cumpre, por último, referir que o regime convencional inclui regras sobre a prorrogação de competência fundada na conexão processual, ou seja, situações em que a competência atribuída a um tribunal é estendida ao conhecimento de questões conexas com a que lhe foi submetida (artigo 6.º).

Direito português

Como antes se observou, não havendo regras dimanadas de convenção internacional que devam prevalecer, é ao direito interno de cada Estado que cabe definir o âmbito da jurisdição dos seus tribunais.
No direito português, as regras de competência internacional dos tribunais relativas a litígios entre privados encontram-se, basicamente, compendiadas no Código de Processo Civil. Este diploma, após a reforma introduzida em 1995, tendeu a aproximar o sistema português do que decorre da Convenção de Bruxelas.
São cinco os princípios em torno dos quais se estrutura a delimitação da competência internacional dos tribunais portugueses. Trata-se de critérios independentes entre si, pelo que basta a verificação de qualquer um deles para que os tribunais portugueses sejam competentes. 

·       O primeiro desses princípios é o já referido princípio do domicílio do réu (actor sequitur forum rei). Também entre nós é essa a regra primária a observar, nos termos do artigo 65.º, n.º 1, alínea a), do CPC: os nossos tribunais são competentes se o réu ou algum dos réus tiver domicílio em território português, salvo tratando-se de acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro.

·       O segundo dos mencionados princípios, consagrado na alínea b) do mesmo preceito legal, é o chamado princípio da coincidência: se os tribunais portugueses forem territorialmente competentes para conhecer de uma causa (ou seja, se tal competência decorrer dos critérios, constantes dos artigos 73.º e seguintes, que distribuem a competência entre os tribunais pertencentes às diferentes circunscrições em que o território nacional se encontra dividido, nos termos das leis de organização judiciária) terão também competência internacional para conhecer dela.

·       Segue-se o princípio da causalidade, que atribui competência aos nossos tribunais para apreciar os litígios referentes a factos praticados em território português (artigo 65.º, n.º 1, alínea c)). Trata-se de uma regra inspirada na ideia de aproximar tanto quanto possível o lugar onde decorre o processo do lugar onde se verificaram os factos que lhe deram causa.

·       De acordo com o princípio da necessidade, os tribunais portugueses serão competentes se o direito invocado não puder tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou se não for exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão (artigo 65.º, n.º 1, alínea d)). A ideia inspiradora é agora a de evitar a denegação da justiça naquelas situações em que o autor não encontra nenhum tribunal que aceite ocupar-se do caso ou em que a propositura de acção no estrangeiro represente um sacrifício incomportável (situação de guerra no país onde deveria intentar-se a acção ou em que esta deva se proposta por um exilado político no país de origem, por exemplo).

·       Por último, temos o princípio da vontade, que se revela particularmente importante no comércio internacional. Refere-se-lhe o artigo 99.º do CPC, onde se regulam os pactos de jurisdição. Muito resumidamente, a lei portuguesa admite a designação convencional do foro competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, desde que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica (n.º 1). Todavia, para que seja válida, a eleição do foro tem de reunir determinados requisitos. Assim, quanto à forma, exige-se que ela resulte de acordo escrito ou confirmado por escrito, podendo este traduzir-se em troca de cartas, telex, telegramas ou outro meio de comunicação de que fique prova escrita (n.º 3, alínea e) e n.º 4). Do ponto de vista da substância, é necessário que a designação:

        diga respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;

        seja justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que, neste último caso, não envolva inconveniente grave para a outra;

        não recaia sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

Este último requisito remete-nos para o art. 65.º-A do CPC, onde vêm delimitados os casos em que os tribunais portugueses gozam de competência internacional exclusiva. São eles:

·       os que digam respeito a acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis situados em território português;

·       os processos especiais de recuperação de empresas e de falência que se refiram a pessoas domiciliadas em Portugal ou a pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português;

·       as acções referentes à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português, bem como para as destinadas a apreciar a validade das deliberações dos respectivos órgãos;

·       as acções que tenham como objecto principal a apreciação da validade da inscrição em registos públicos de quaisquer direitos sujeitos a registo em Portugal.

O recurso à arbitragem

Noções introdutórias; as convenções de arbitragem

A arbitragem é uma forma de composição de litígios que geralmente assenta na vontade dos interessados (arbitragem voluntária). São raras as situações em que a lei impõe o recurso à arbitragem para resolução de um diferendo originado por uma relação jurídica de carácter privado (arbitragem necessária).
Tal forma de composição de litígios é reconhecida como válida por numerosas ordens jurídicas. No direito português constitui objecto da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto (Lei da Arbitragem Voluntária), que proclama no seu artigo 1.º, n.º 1, que qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis e que, por lei especial, não esteja submetido exclusivamente aos tribunais judiciais ou a arbitragem necessária, pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros. Reconhece a mesma lei (art. 26.º) que as decisões arbitrais têm força executiva idêntica às sentenças dos tribunais de primeira instância.
Designa-se convenção de arbitragem o acordo pelo qual os interessados manifestam a vontade de submeter um litígio a um tribunal arbitral. O referido acordo tanto pode ter por objecto um litígio actual (inclusive, já submetido a um tribunal judicial), caso em que se denomina compromisso arbitral, como os litígios que eventualmente venham a emergir de uma determinada relação jurídica, hipótese em que se tratará de uma cláusula compromissória. Esta constitui, geralmente, uma estipulação incluída num acordo de âmbito mais vasto.
Na convenção de arbitragem podem as partes regular a composição do tribunal arbitral, o modo de designação dos árbitros e estabelecer as regras processuais que os árbitros devem observar. Acontece, porém, frequentemente que as partes remetam a disciplina de todos esses aspectos para um regulamento emanado de uma entidade habilitada a realizar arbitragens institucionalizadas. O mais conhecido é o Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, que se aplica às arbitragens conduzidas pelo Tribunal permanente constituído sob a égide da CCI.

Razões justificativas do recurso à arbitragem

São muitas e variadas as razões que estão na base do êxito alcançado pela arbitragem enquanto forma de composição de litígios. Ela constitui, inclusive, o meio normal de composição dos litígios comerciais internacionais, posto que a resolução da grande maioria dos litígios desse tipo é confiada a tribunais arbitrais. Constitui, por outro lado, prática comum a inclusão de cláusulas de arbitragem em contratos internacionais. E é também elevada a percentagem dos casos de cumprimento espontâneo das sentenças arbitrais. O que se explica pelo receio de aplicação de sanções, igualmente espontâneas, que os agentes económicos intervenientes neste mercado não deixarão de aplicar à parte que não execute voluntariamente os seus preceitos.
De entre as vantagens que comummente se associam ao recurso a tribunais arbitrais algumas existem que o tornam especialmente atraente nos litígios internacionais. Desde logo, a neutralidade do tribunal arbitral, posto que a causa será decidida por “juízes” que não administram a justiça em nome de um Estado e que podem oferecer garantias de total imparcialidade e isenção, tanto pela sua nacionalidade como pelo lugar em que o processo arbitral irá decorrer.
Por outro lado, a decisão pode ser confiada a pessoas dotadas de preparação específica nas questões do comércio internacional e com conhecimentos técnicos adequados a cada espécie de litígio.
Acrescem, ainda, as vantagens inerentes à maior simplicidade e celeridade do processo arbitral, bem como a maleabilidade dos critérios jurídicos que hão-de presidir ao processo e à decisão da causa.

A arbitragem internacional na lei portuguesa

Numa iniciativa inédita entre nós, a Lei n.º 31/86 estabeleceu uma regulamentação específica para arbitragem internacional. Fê-lo no seu capítulo VII, que é composto por apenas quatro artigos. O primeiro (art. 32.º) enuncia a noção de arbitragem internacional. O art. 33.º reporta-se ao direito aplicável pelos árbitros neste tipo de arbitragens. A disposição subsequente ocupa-se das vias de recurso contra a decisão proferida no quadro de uma arbitragem internacional, consagrando o princípio da irrecorribilidade da decisão. O último (art. 35.º), permite às partes confiar aos árbitros a missão de decidir o litígio enquanto amiables compositeurs – composição amigável.
Importa frisar que a regulamentação especial contida no Capítulo VII da Lei da Arbitragem Voluntária não exclui a aplicabilidade das restantes disposições do diploma que não se mostrem incompatíveis com aquela regulamentação. Digamos que a lei estabeleceu um regime geral, aplicável, em princípio, a todas as arbitragens que decorram no território nacional, e regras específicas para as arbitragens internacionais, que, em certos aspectos, se desviam daquele regime geral, mas não ao afastam totalmente.
Curaremos, de seguida, de precisar alguns tópicos do regime português da arbitragem internacional.

O conceito de arbitragem internacional

Segundo a Lei n.º 31/86, “entende-se por arbitragem internacional a que põe em jogo interesses do comércio internacional”. Trata-se de uma fórmula manifestamente inspirada no art. 1492.º do Código de Processo Civil e que corresponde ao critério usado pela jurisprudência francesa para identificar os contratos internacionais.
Não se antolha fácil precisar o que sejam arbitragens que põem em jogo interesses do comércio internacional. Considera-se, no entanto, adquirido que o conceito de arbitragem internacional será equivalente a arbitragem internacional de direito privado e que, adoptando uma formulação tão ampla, o legislador pretendeu seguir um critério económico, abrangendo situações que apresentam conexões relevantes com apenas um país, mas que se encontram intrinsecamente ligadas a uma operação económica internacional. E, paralelamente, o conceito permite afastar do seu âmbito certas transacções cujos elementos de extraneidade se revelam insignificantes (compra ocasional de uma “recordação” em Portugal por turista estrangeiro).
No contrapólo da arbitragem internacional está a arbitragem interna, que será aquela que não põe em jogo interesses do comércio internacional.
Com estes conceitos não se confundem os de arbitragem nacional e de arbitragem estrangeira.
Esta última classificação é cumulativa com a anterior e decorre da delimitação do âmbito de aplicação no espaço da Lei de Arbitragem. Vem este enunciado no art. 37.º, nos seguintes termos: “o presente diploma aplica-se às arbitragens que tenham lugar em território nacional”.
Teremos, assim, que nacionais serão todas as arbitragens que decorram em território português e às quais se aplica a lei portuguesa de arbitragem voluntária. As decisões proferidas nos correspondentes processos têm força de caso julgado, nos termos do n.º 1 do art. 26.º da Lei n.º 31/86, e gozam de eficácia executiva como se se tratasse de uma sentença dos tribunais incluídos na organização judiciária nacional. Não necessitam, por isso, de ser sujeitas a nenhum processo de reconhecimento e execução.
As arbitragens estrangeiras são aquelas que não decorrem em território nacional e que, por essa razão, não se regem pela lei portuguesa. As decisões emitidas pelos árbitros no decurso dessas arbitragens só podem, em princípio, produzir efeitos em Portugal se forem reconhecidas e declaradas executórias por um tribunal português.
Mau grado a dificuldade resultante do art. 1094.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, parece ser indiferente, para este efeito – para o efeito desta distinção entre arbitragens nacionais e estrangeiras – o local onde é proferida a decisão. O que interessa é o local onde decorre o processo arbitral.
Uma arbitragem internacional é, pois, segundo o conceito da lei portuguesa uma especial modalidade de arbitragem nacional. Ou seja: uma arbitragem nacional tanto pode ser interna como internacional. E o mesmo se diga das arbitragens estrangeiras. Uma arbitragem internacional, por outro lado, é sempre nacional relativamente a um Estado e estrangeira quanto aos demais.
Os conceitos acabados de esclarecer e o âmbito territorial de aplicação da Lei n.º 31/86, implicam, como melhor veremos adiante, uma certa inflexão no regime do reconhecimento e execução das sentenças arbitrais.

O direito aplicável ao fundo da causa

Um dos aspectos do regime jurídico da arbitragem internacional que maior polémica tem suscitado é o da determinação do direito aplicável pelos árbitros
O art. 33.º da Lei n.º 31/86 adoptou uma solução francamente liberal ao conferir às partes a faculdade de escolherem o direito que os árbitros deverão aplicar e, sobretudo, ao determinar que, na falta de escolha, o tribunal aplique o direito que considere mais apropriado ao litígio.
As partes podem, também, autorizar os árbitros a julgar segundo a equidade. Esta solução mostra-se de difícil destrinça relativamente à composição amigável prevista no art. 35.º da Lei da Arbitragem Voluntária.
Quanto à faculdade de escolha da lei aplicável, levantam-se diversas questões. A primeira das quais consiste em saber se é ou não permitida a escolha da lei mesmo naqueles domínios onde a lei portuguesa (as regras de conflitos do direito português) não consagram a autonomia da vontade em direito internacional privado. Face ao teor do ar. 33.º, n.º 2, a resposta parece dever ser positiva.
Uma segunda questão tem a ver com o próprio conceito de “direito”. Está em causa saber se as partes só podem seleccionar uma ordem jurídica estadual ou se podem recorrer também à lex mercatoria, aos princípios gerais de direito ou ao direito internacional público.
A Exposição de Motivos que acompanhava a proposta de lei que está na origem do diploma em apreço (a Proposta de Lei n.º 34/IV) parece inculcar que as partes só podem designar o direito de um Estado, excluindo-se, por conseguinte, a possibilidade de remissão para ordenamentos não-estaduais ou para a lex mercatoria. Todavia, esta opinião não é pacífica.
Uma derradeira questão prende-se com a escolha pelos árbitros direito aplicável, caso as partes não o façam. Parece decorrer da letra da lei que se confiou aos árbitros a determinação da lei material directamente aplicável, sem necessidade de elegerem, portanto, a regra de conflitos mais adequada ao litígio. Quanto a saber qual seja e como se determina o “direito mais apropriado” ao litígio a lei não dá nenhuma indicação segura, restando confiar no prudente arbítrio do julgador.

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
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