Os
modos de
resolução dos
litígios internacionais
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São
duas, à partida, as vias de resolução que se oferecem às partes.
Uma
primeira consiste em submeter o litígio aos tribunais de determinado
Estado, ou seja, aos mesmos tribunais a que usualmente se recorre para
dirimir os litígios que surjam dentro das fronteiras desse Estado.
Trata-se, deste modo, de recorrer às instâncias
jurisdicionais de índole estadual, aos tribunais que se encontram
integrados na organização judiciária de um Estado.
A
outra via traduz-se em recorrer à arbitragem,
solução que é também comummente seguida para a resolução de litígios
puramente internos e que vem ganhando terreno nos últimos anos, mercê
das vantagens que pode oferecer, especialmente na apreciação de litígios
internacionais. Trata-se, agora, de submeter a resolução dos diferendos
a tribunais “privados”, não integrados em qualquer estrutura judiciária
estadual e que são compostos por juízes que não exercem
profissionalmente essa função (juízes “não togados”) ou que, pelo
menos, não intervêm nessa qualidade.
Poder-se-ia
pensar numa terceira via de solução: o recurso a tribunais internacionais,
ou seja, a tribunais que não pertençam a nenhuma ordem jurisdicional
estadual, não dependendo, por isso, de nenhum Estado em particular.
Trata-se, em suma, de tribunais
supranacionais, geralmente instituídos por tratado ou convenção
internacional celebrada entre diversos Estados ou criados no âmbito de
organizações internacionais, igualmente instituídas por esse modo.
Todavia, tal solução só raramente se mostra disponível, ou porque os
tribunais que revestem esta natureza não têm competência para dirimir
litígios entre meros particulares, ou porque, na maior parte dos casos,
constituem uma última instância de recurso a que as partes só poderão
dirigir-se após esgotarem outras vias jurisdicionais. E mesmo quando isso
se mostra possível, os referidos tribunais limitam-se, normalmente, a
apreciar aspectos muito específicos do litígio.
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Os problemas suscitados pelo recurso aos
tribunais estaduais
O
recurso aos tribunais estaduais para a resolução de litígios com carácter
internacional levanta problemas jurídicos delicados; o primeiro dos quais
consiste em seleccionar, de entre todos os tribunais que se encontrem
integrados em sistemas jurídicos que apresentem conexão relevante com o
caso, aqueles a que o litígio deve ser submetido. São os denominados conflitos de jurisdições, em sentido estrito.
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A determinação do tribunal competente
Como
sempre acontece, a adjudicação de competência aos tribunais integrados
em ordens judiciárias estatuais obedece a regras jurídicas. Idealmente,
deveria haver regras ou, pelo menos, princípios comuns a todos os
Estados, que viabilizassem uma distribuição uniforme da competência
entre os tribunais de todos eles para a apreciação dos litígios que
tenham contacto com mais de uma rodem jurídica. Mas não é isso que, na
realidade, se verifica. Tais regras comuns não existem, de facto, muito
embora se registe algum consenso em torno de certos princípios
fundamentais.
Deste
modo, a competência internacional dos tribunais de cada Estado – a
medida da respectiva jurisdição – é, essencialmente, definida por
regras do seu próprio direito interno. Ou seja, cada país determina,
unilateralmente, quando e em que casos os seus próprios tribunais são
chamados a resolver litígios internacionais. Fá-lo através das chamadas
regras de conflitos de jurisdições,
as quais apenas cuidam de delimitar a competência internacional dos
tribunais locais, abstendo-se de atribuir competência a tribunais que não
se integrem na sua própria organização judiciária.
As
regras de conflitos de jurisdições (ou regras de competência
internacional) estabelecem os critérios
de atribuição de competência aos tribunais do Estado que as edita,
critérios esses que atendem, geralmente, à relação de proximidade
existente entre o caso a decidir e os tribunais locais.
Existem,
no entanto, algumas tentativas bem sucedidas de uniformização das regras
de conflitos de jurisdições mediante tratado internacional, ou seja,
situações em que, pelo menos, dois Estados acordam na adopção de
regras comuns de repartição da competência internacional entre os seus
tribunais.
De
entre tais tentativas merecem particular destaque duas convenções
internacionais a que Portugal se encontra vinculado: a
Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões
em matéria civil e comercial, assinada em Bruxelas em 27 de Setembro
de 1968 (Convenção de Bruxelas),
e a convenção “paralela” celebrada em Lugano em 16 de Dezembro de
1988 (Convenção de Lugano).
A
primeira foi inicialmente concluída entre os originários Estados membros
da Comunidade Económica Europeia, em cumprimento do artigo 220.º do
Tratado de Roma (que instituiu a CEE). O seu texto veio depois a ser
modificado pelas sucessivas Convenções de Adesão dos Estados que
posteriormente acederam àquela organização. É complementada por um Protocolo
relativo à interpretação da Convenção pelo Tribunal de Justiça,
assinado no Luxemburgo em 3 de Junho de 1971, cujo texto foi também
modificado pelas sucessivas Convenções de Adesão e que atribui competência
àquele Tribunal para decidir sobre a interpretação das disposições da
Convenção, a pedido dos tribunais dos Estados Contratantes.
A
Convenção de Lugano, cujo texto é muito similar ao da Convenção de
Bruxelas (e daí que seja comummente referida como “convenção
paralela”), destinou-se, essencialmente, a permitir a extensão dos
benefícios da Convenção de Bruxelas aos países da EFTA.
Observe-se
aqui que, no seu específico campo de aplicação, as disposições das
convenções a que vimos de aludir prevalecem sobre as regras homólogas
do direito interno português. Por conseguinte, sempre que se verifique
uma hipótese que se integre no âmbito de aplicação daqueles textos
internacionais, é às respectivas disposições que os tribunais dos
Estados contratantes deverão recorrer para determinar a sua própria
competência.
Síntese do regime de competência
instituído pelas Convenções de Bruxelas e de Lugano
Como
se assinalou, os textos de ambas as Convenções apresentam um notável
paralelismo, muito embora não sejam absolutamente idênticos. Porém, no
que respeita à delimitação da competência jurisdicional, as diferenças
que exibem são mínimas. De resto, a Convenção de Bruxelas apresenta
uma certa primazia sobre a de Lugano, por isso que esta última não
prejudica a aplicação dos preceitos daquela nos Estados comunitários
(cfr. artigo 54.º-B, n.º 1, da Convenção de Lugano). Daí que, na
exposição subsequente, nos limitemos a sumariar o regime da Convenção
de Bruxelas.
a)
Âmbito de aplicação do regime convencional
Convirá
iniciar tal exposição por uma breve referência ao âmbito de aplicação
das disposições da Convenção de Bruxelas.
Em
primeiro lugar, a Convenção aplica-se apenas em matéria
civil e comercial, seja qual for a natureza da jurisdição chamada a
resolver o caso (artigo 1.º, § 1.º). Ficam, por isso, excluídas as matérias
fiscais, aduaneiras e administrativas. Mas ficam também de fora do âmbito
de aplicação material da Convenção determinadas áreas que, na
obstante se enquadrarem no conceito de “matéria civil e comercial”,
segundo a concepção dos direitos europeus continentais, são
expressamente excluídas (cfr. artigo 1.º, § 2.º). De entre tais matérias,
apresentam especial interesse para o comércio internacional, a definição
do estado e da capacidade das pessoas singulares, as falências,
concordatas e outros processos análogos, a segurança social e a
arbitragem.
Do
ponto de vista geográfico-espacial, a Convenção só é naturalmente
aplicável nos Estados partes. Todavia, importa acrescentar que o regime
convencional de competência internacional só é plenamente aplicável
quando o réu se encontre domiciliado num Estado contratante (cfr. artigos
2.º, § 1.º, 3.º, § 1.º, e 4.º, § 1.º) ou tenha aí a sua sede
(cfr. art. 53.º). Mas, para esse efeito, não releva a sua nacionalidade,
pois, mesmo que o réu não seja nacional de um dos Estados contratantes,
a Convenção aplica-se desde que ele se encontre domiciliado num desses
Estados.
Quanto
ao âmbito temporal de aplicação, em princípio, os critérios
estabelecidos pela Convenção só valem para acções judiciais
intentadas após a sua entrada em vigor no Estado cujos tribunais são
chamados a conhecer do litígio.
b)
As regras de competência internacional
Posto
isto, vejamos então, a traços largos, o sistema de competência
jurisdicional introduzido pela Convenção.
A regra
geral é a de que o réu domiciliado num Estado contratante deve ser
demandado, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais
desse mesmo Estado (artigo 2.º, § 1.º). Consagra-se, deste modo, o
princípio actor sequitur forum rei,
que merece o acolhimento da generalidade das ordens jurídicas (incluindo
do direito português vigente – cfr. infra).
Para
saber se o demandado tem ou não domicílio no território do Estado
contratante a que é submetido o litígio, o juiz deverá aplicar a sua
lei interna (artigo 52.º, § 1.º). Tratando-se de uma sociedade ou de
uma pessoa colectiva, considera-se que tem domicílio no lugar da
respectiva sede (artigo 53.º, § 1.º).
Se o
réu não se encontrar domiciliado num Estado contratante, em princípio a
Convenção não se aplica e o tribunal competente será determinado, em
cada Estado parte, por aplicação do seu próprio direito interno (artigo
4.º, § 1.º).
A par
da regra geral acima enunciada, a Convenção consagra regras especiais de competência. Tais regras podem ser de dois
tipos. Algumas delas limitam-se a estabelecer competências concorrentes com a que decorre da regra geral, ou
seja, o interessado pode optar entre propor a acção junto dos tribunais
do domicílio do requerido, seguindo a regra geral, ou intentá-la nos
tribunais que sejam indicados pelo critério especial.
Outras
criam um sistema de competências
autónomo e fechado, tendo em vista a protecção
de certas categorias de pessoas que se encontram em posição mais débil,
no contexto de uma relação jurídica.
Pertencem
à primeira categoria as disposições do artigo 5.º, onde se prevê, por
exemplo, que o requerido com domicílio num Estado contratante possa ser
demandado:
·
em matéria
contratual, perante o tribunal do lugar onde a obrigação que serve
de fundamento ao pedido foi ou devia ser cumprida, sendo que, em matéria
de contrato individual de trabalho, esse lugar é aquele em que o
trabalhador presta habitualmente o seu trabalho (n.º 1);
·
em matéria
extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto
causador dos danos (n.º 3);
·
tratando-se de
um litígio relativo à exploração
de uma sucursal, de uma agência ou de qualquer outro estabelecimento,
perante o tribunal do lugar da sua situação (n.º 5);
·
se se tratar de
um litígio relativo a reclamação
sobre remuneração devida por assistência ou salvamento de que tenha
beneficiado uma carga ou um frete, perante o tribunal em cuja jurisdição
essa carga ou o respectivo frete tenha sido arrestado para garantir esse
pagamento ou poderia tê-lo sido se não tivesse sido prestada caução ou
outra garantia (n.º 7).
No
grupo das regras de competência
protectivas da parte mais fraca incluem-se as relativas à matéria
dos seguros e aos contratos
celebrados por consumidores.
No
primeiro caso, a Convenção estabelece uma nítida diferenciação entre
as hipóteses em que o demandado seja o segurador e aquelas em que é este
a propor a acção.
Assim,
sendo o segurador o demandado, mau grado se aplique a regra geral da
competência dos tribunais do Estado onde aquele estiver domiciliado
(artigo 8.º, § 1.º, 1), a Convenção confere à parte presumivelmente
mais fraca (o tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário) diversas
possibilidades alternativas. Desde logo, o tomador do seguro pode optar
por recorrer aos tribunais do lugar onde estiver domiciliado (artigo 8.º,
§ 1.º, 2 – forum actoris).
Mas se estiver em causa um seguro de responsabilidade civil, um seguro que
tenha por objecto bens imóveis, ou um seguro que incida simultaneamente
sobre bens imóveis e móveis cobertos pela mesma apólice e atingidos
pelo mesmo sinistro, o segurador pode também ser demandado perante o
tribunal onde o facto danoso ocorreu (artigo 9.º). Além disso, em matéria
de seguros de responsabilidade civil, o segurador pode também ser chamado
perante o tribunal onde for proposta a acção do lesado contra o
segurado, desde que a lei desse país assim o permita (artigo 10.º, § 1.º).
Caso
seja o segurador a intentar a acção, este não tem outra alternativa que
não seja propo-la perante os tribunais do Estado contratante em cujo
território estiver domiciliado o requerido, quer este seja o tomador do
seguro, o segurado ou o beneficiário (artigo 11.º, § 1.º).
No
que toca aos conflitos de consumo,
o sistema é de algum modo análogo. Na verdade, enquanto o consumidor
pode intentar uma acção, quer perante os tribunais do Estado onde se
encontre domiciliada a outra parte, quer junto dos tribunais do Estado em
cujo território ele próprio (consumidor) estiver domiciliado (artigo 14.º,
§ 1.º), a outra parte no contrato só pode intentar uma acção contra o
consumidor perante os tribunais do Estado do domicílio do consumidor
(artigo 14.º, § 1.º).
Registe-se,
ainda, que em ambos os casos (ou seja, tanto em matéria de seguros como
no domínio dos conflitos de consumo) a Convenção, com o objectivo de
assegurar a protecção da parte mais fraca, estabelece ficções de domicílio
do segurador e do co-contratante do consumidor, na medida em que os
considera domiciliados no Estado contratante em que possuam sucursal, agência
ou qualquer outro estabelecimento, quanto aos litígios relativos à
exploração de tais formas de representação, mesmo que eles não tenham
sede no território de um Estado contratante (cfr. os artigos 8.º, § 2.º,
e 13.º, § 2.º). De igual modo, em ambos os domínios se verificam
importantes restrições à admissibilidade dos pactos de jurisdição
(cfr. artigos 12.º e 15.º), situação que também ocorre em matéria de
contrato individual de trabalho (artigo 17.º, § 6.º).
Ora,
a este respeito cumpre precisamente referir que a maior parte das regras
de competência estabelecidas pela Convenção pode ser afastada pela
vontade das partes. Quer isto dizer que a Convenção admite com largueza
os chamados pactos atributivos de
jurisdição, ou seja, convenções através das quais as partes
acordam em atribuir competência aos tribunais de determinado Estado
contratante para decidir os litígios que decorram de certa relação jurídica
(artigo 17.º). E ficciona mesmo a existência de um pacto sobre competência
sempre que uma parte compareça perante um tribunal sem arguir a
respectiva incompetência (artigo 18.º). Considera-se, nestes casos, que
a parte que compareceu aceitou tacitamente a competência do tribunal onde
foi intentada a acção.
As
convenções sobre competência, para além de se encontrarem sujeitas às
restrições que acima se assinalaram, a respeito dos contratos de seguro,
de consumo e de trabalho, também não são admissíveis se os tribunais
cuja competência for por elas afastada tiverem competência exclusiva,
nos termos do artigo 16.º. Este preceito estabelece, na verdade, os casos
de competência exclusiva dos tribunais de um Estado contraente, competência
essa que é válida seja qual for o domicílio do demandado e que
prevalece sobre a que decorre das regras gerais e especiais anteriormente
analisadas. Quer isto dizer que se trata de hipóteses em que a jurisdição
fica apenas reservada aos tribunais designados pelas regras de competência
exclusiva. De entre elas, permitimo-nos destacar a atribuição de competência
exclusiva aos tribunais do Estado contratante:
·
onde um imóvel
se encontre localizado, para apreciar os litígios referentes aos direitos
reais (propriedade, usufruto, etc.) sobre esse imóvel ou ao respectivo
arrendamento;
·
onde se situe a
sede de uma sociedade ou outra pessoa colectiva, para conhecer dos
problemas relativos à validade e dissolução da mesma, assim como os
atinentes às decisões dos seus órgãos;
·
onde tiver sido
requerido ou efectuado o depósito ou o registo, em matéria de inscrição
ou de validade de patentes, marcas, desenhos, modelos e outros direitos análogos,
sujeitos a depósito ou a registo.
Em
princípio, considera-se que também goza de competência exclusiva o
tribunal que for designado por acordo das partes.
Para
completar o esboço do sistema de competência instituído pela Convenção
de Bruxelas, cumpre, por último, referir que o regime convencional inclui
regras sobre a prorrogação de competência fundada na conexão
processual, ou seja, situações em que a competência atribuída a um
tribunal é estendida ao conhecimento de questões conexas com a que lhe
foi submetida (artigo 6.º).
Direito português
Como
antes se observou, não havendo regras dimanadas de convenção
internacional que devam prevalecer, é ao direito interno de cada Estado
que cabe definir o âmbito da jurisdição dos seus tribunais.
No
direito português, as regras de competência internacional dos tribunais
relativas a litígios entre privados encontram-se, basicamente,
compendiadas no Código de Processo Civil. Este diploma, após a reforma
introduzida em 1995, tendeu a aproximar o sistema português do que
decorre da Convenção de Bruxelas.
São
cinco os princípios em torno dos quais se estrutura a delimitação da
competência internacional dos tribunais portugueses. Trata-se de critérios
independentes entre si, pelo que basta a verificação de qualquer um
deles para que os tribunais portugueses sejam competentes.
·
O primeiro
desses princípios é o já referido princípio
do domicílio do réu (actor
sequitur forum rei). Também entre nós é essa a regra primária a
observar, nos termos do artigo 65.º, n.º 1, alínea a),
do CPC: os nossos tribunais são competentes se o réu ou algum dos réus
tiver domicílio em território português, salvo tratando-se de acções
relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país
estrangeiro.
·
O segundo dos
mencionados princípios, consagrado na alínea b) do mesmo preceito legal, é o chamado princípio da coincidência: se os tribunais portugueses forem
territorialmente competentes para conhecer de uma causa (ou seja, se tal
competência decorrer dos critérios, constantes dos artigos 73.º e
seguintes, que distribuem a competência entre os tribunais pertencentes
às diferentes circunscrições em que o território nacional se encontra
dividido, nos termos das leis de organização judiciária) terão também
competência internacional para conhecer dela.
·
Segue-se o princípio
da causalidade, que atribui competência aos nossos tribunais para
apreciar os litígios referentes a factos praticados em território
português (artigo 65.º, n.º 1, alínea c)). Trata-se de uma regra
inspirada na ideia de aproximar tanto quanto possível o lugar onde
decorre o processo do lugar onde se verificaram os factos que lhe deram
causa.
·
De acordo com o
princípio da necessidade, os
tribunais portugueses serão competentes se o direito invocado não puder
tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território
português, ou se não for exigível ao autor a sua propositura no
estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica
nacional haja algum elemento ponderoso de conexão (artigo 65.º, n.º 1,
alínea d)). A ideia inspiradora
é agora a de evitar a denegação da justiça naquelas situações em que
o autor não encontra nenhum tribunal que aceite ocupar-se do caso ou em
que a propositura de acção no estrangeiro represente um sacrifício
incomportável (situação de guerra no país onde deveria intentar-se a
acção ou em que esta deva se proposta por um exilado político no país
de origem, por exemplo).
·
Por último,
temos o princípio da vontade,
que se revela particularmente importante no comércio internacional.
Refere-se-lhe o artigo 99.º do CPC, onde se regulam os pactos de jurisdição.
Muito resumidamente, a lei portuguesa admite a designação convencional
do foro competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios
eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, desde que a relação
controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica (n.º 1).
Todavia, para que seja válida, a eleição do foro tem de reunir
determinados requisitos. Assim, quanto à forma, exige-se que ela resulte
de acordo escrito ou confirmado por escrito, podendo este traduzir-se em
troca de cartas, telex, telegramas ou outro meio de comunicação de que
fique prova escrita (n.º 3, alínea e)
e n.º 4). Do ponto de vista da substância, é necessário que a designação:
–
diga respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;
–
seja justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de
uma delas, desde que, neste último caso, não envolva inconveniente grave
para a outra;
–
não recaia sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais
portugueses.
Este
último requisito remete-nos para o art. 65.º-A do CPC, onde vêm
delimitados os casos em que os tribunais portugueses gozam de competência
internacional exclusiva. São eles:
·
os que digam
respeito a acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre
bens imóveis situados em território português;
·
os processos
especiais de recuperação de empresas e de falência que se refiram a
pessoas domiciliadas em Portugal ou a pessoas colectivas ou sociedades
cuja sede esteja situada em território português;
·
as acções
referentes à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao
decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades cuja sede
esteja situada em território português, bem como para as destinadas a
apreciar a validade das deliberações dos respectivos órgãos;
·
as acções que
tenham como objecto principal a apreciação da validade da inscrição em
registos públicos de quaisquer direitos sujeitos a registo em Portugal.
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O recurso à arbitragem
Noções introdutórias; as convenções
de arbitragem
A
arbitragem é uma forma de composição de litígios que geralmente
assenta na vontade dos interessados (arbitragem voluntária). São raras
as situações em que a lei impõe o recurso à arbitragem para resolução
de um diferendo originado por uma relação jurídica de carácter privado
(arbitragem necessária).
Tal
forma de composição de litígios é reconhecida como válida por
numerosas ordens jurídicas. No direito português constitui objecto da
Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto (Lei da Arbitragem Voluntária), que
proclama no seu artigo 1.º, n.º 1, que qualquer litígio que não
respeite a direitos indisponíveis e que, por lei especial, não esteja
submetido exclusivamente aos tribunais judiciais ou a arbitragem necessária,
pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à
decisão de árbitros. Reconhece a mesma lei (art. 26.º) que as decisões
arbitrais têm força executiva idêntica às sentenças dos tribunais de
primeira instância.
Designa-se
convenção de arbitragem o acordo pelo qual os interessados manifestam a
vontade de submeter um litígio a um tribunal arbitral. O referido acordo
tanto pode ter por objecto um litígio actual (inclusive, já submetido a
um tribunal judicial), caso em que se denomina compromisso
arbitral, como os litígios que eventualmente venham a emergir de uma
determinada relação jurídica, hipótese em que se tratará de uma cláusula
compromissória. Esta constitui, geralmente, uma estipulação incluída
num acordo de âmbito mais vasto.
Na
convenção de arbitragem podem as partes regular a composição do
tribunal arbitral, o modo de designação dos árbitros e estabelecer as
regras processuais que os árbitros devem observar. Acontece, porém,
frequentemente que as partes remetam a disciplina de todos esses aspectos
para um regulamento emanado de uma entidade habilitada a realizar
arbitragens institucionalizadas. O mais conhecido é o Regulamento de
Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, que se aplica às
arbitragens conduzidas pelo Tribunal permanente constituído sob a égide
da CCI.
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Razões justificativas do recurso à
arbitragem
São
muitas e variadas as razões que estão na base do êxito alcançado pela
arbitragem enquanto forma de composição de litígios. Ela constitui,
inclusive, o meio normal de composição dos litígios comerciais
internacionais, posto que a resolução da grande maioria dos litígios
desse tipo é confiada a tribunais arbitrais. Constitui, por outro lado,
prática comum a inclusão de cláusulas de arbitragem em contratos
internacionais. E é também elevada a percentagem dos casos de
cumprimento espontâneo das sentenças arbitrais. O que se explica pelo
receio de aplicação de sanções, igualmente espontâneas, que os
agentes económicos intervenientes neste mercado não deixarão de aplicar
à parte que não execute voluntariamente os seus preceitos.
De
entre as vantagens que comummente se associam ao recurso a tribunais
arbitrais algumas existem que o tornam especialmente atraente nos litígios
internacionais. Desde logo, a neutralidade
do tribunal arbitral, posto que a causa será decidida por “juízes”
que não administram a justiça em nome de um Estado e que podem oferecer
garantias de total imparcialidade e isenção, tanto pela sua
nacionalidade como pelo lugar em que o processo arbitral irá decorrer.
Por
outro lado, a decisão pode ser confiada a pessoas dotadas de preparação
específica nas questões do comércio internacional e com conhecimentos técnicos
adequados a cada espécie de litígio.
Acrescem,
ainda, as vantagens inerentes à maior simplicidade
e celeridade do processo
arbitral, bem como a maleabilidade
dos critérios jurídicos que hão-de presidir ao processo e à decisão
da causa.
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A arbitragem internacional na lei
portuguesa
Numa
iniciativa inédita entre nós, a Lei n.º 31/86 estabeleceu uma
regulamentação específica para arbitragem internacional. Fê-lo no seu
capítulo VII, que é composto por apenas quatro artigos. O primeiro (art.
32.º) enuncia a noção de arbitragem internacional. O art. 33.º
reporta-se ao direito aplicável pelos árbitros neste tipo de
arbitragens. A disposição subsequente ocupa-se das vias de recurso
contra a decisão proferida no quadro de uma arbitragem internacional,
consagrando o princípio da irrecorribilidade da decisão. O último (art.
35.º), permite às partes confiar aos árbitros a missão de decidir o
litígio enquanto amiables
compositeurs – composição amigável.
Importa frisar que a regulamentação especial contida no Capítulo VII da
Lei da Arbitragem Voluntária não exclui a aplicabilidade das restantes
disposições do diploma que não se mostrem incompatíveis com aquela
regulamentação. Digamos que a lei estabeleceu um regime geral,
aplicável, em princípio, a todas as arbitragens que decorram no
território nacional, e regras específicas para as arbitragens
internacionais, que, em certos aspectos, se desviam daquele regime geral,
mas não ao afastam totalmente.
Curaremos, de seguida, de precisar alguns tópicos do regime português da
arbitragem internacional.
O conceito de arbitragem internacional
Segundo
a Lei n.º 31/86, “entende-se por arbitragem internacional a que põe em jogo interesses do
comércio internacional”. Trata-se de uma fórmula
manifestamente inspirada no art. 1492.º do Código de Processo Civil e
que corresponde ao critério usado pela jurisprudência francesa para
identificar os contratos internacionais.
Não
se antolha fácil precisar o que sejam arbitragens que põem em jogo interesses do comércio internacional. Considera-se, no entanto,
adquirido que o conceito de arbitragem internacional será equivalente a
arbitragem internacional de direito privado e que, adoptando uma formulação
tão ampla, o legislador pretendeu seguir um critério económico,
abrangendo situações que apresentam conexões relevantes com apenas um
país, mas que se encontram intrinsecamente ligadas a uma operação económica
internacional. E, paralelamente, o conceito permite afastar do seu âmbito
certas transacções cujos elementos de extraneidade se revelam
insignificantes (compra ocasional de uma “recordação” em Portugal
por turista estrangeiro).
No
contrapólo da arbitragem internacional está a arbitragem
interna, que será aquela que não põe em jogo interesses do comércio
internacional.
Com
estes conceitos não se confundem os de arbitragem
nacional e de arbitragem
estrangeira.
Esta
última classificação é cumulativa com a anterior e decorre da delimitação
do âmbito de aplicação no espaço da Lei de Arbitragem. Vem este
enunciado no art. 37.º, nos seguintes termos: “o
presente diploma aplica-se às arbitragens que tenham lugar em território
nacional”.
Teremos,
assim, que nacionais serão
todas as arbitragens que decorram em território português e às quais se
aplica a lei portuguesa de arbitragem voluntária. As decisões proferidas
nos correspondentes processos têm força de caso julgado, nos termos do
n.º 1 do art. 26.º da Lei n.º 31/86, e gozam de eficácia executiva
como se se tratasse de uma sentença dos tribunais incluídos na organização
judiciária nacional. Não necessitam, por isso, de ser sujeitas a nenhum
processo de reconhecimento e execução.
As arbitragens
estrangeiras são aquelas que não decorrem em território nacional e
que, por essa razão, não se regem pela lei portuguesa. As decisões
emitidas pelos árbitros no decurso dessas arbitragens só podem, em princípio,
produzir efeitos em Portugal se forem reconhecidas e declaradas executórias
por um tribunal português.
Mau
grado a dificuldade resultante do art. 1094.º, n.º 1, do Código de
Processo Civil, parece ser indiferente, para este efeito – para o efeito
desta distinção entre arbitragens nacionais e estrangeiras – o local
onde é proferida a decisão. O que interessa é o local onde decorre o
processo arbitral.
Uma
arbitragem internacional é, pois, segundo o conceito da lei portuguesa
uma especial modalidade de arbitragem nacional. Ou seja: uma arbitragem
nacional tanto pode ser interna como internacional. E o mesmo se diga das
arbitragens estrangeiras. Uma arbitragem internacional, por outro lado, é
sempre nacional relativamente a um Estado e estrangeira quanto aos demais.
Os
conceitos acabados de esclarecer e o âmbito territorial de aplicação da
Lei n.º 31/86, implicam, como melhor veremos adiante, uma certa inflexão
no regime do reconhecimento e execução das sentenças arbitrais.
O direito aplicável ao fundo da causa
Um
dos aspectos do regime jurídico da arbitragem internacional que maior polémica
tem suscitado é o da determinação do direito aplicável pelos árbitros
O
art. 33.º da Lei n.º 31/86 adoptou uma solução francamente liberal ao
conferir às partes a faculdade de escolherem o direito que os árbitros
deverão aplicar e, sobretudo, ao determinar que, na falta de escolha, o
tribunal aplique o direito que considere mais apropriado ao litígio.
As
partes podem, também, autorizar os árbitros a julgar segundo a equidade.
Esta solução mostra-se de difícil destrinça relativamente à composição
amigável prevista no art. 35.º da Lei da Arbitragem Voluntária.
Quanto
à faculdade de escolha da lei aplicável, levantam-se diversas questões.
A primeira das quais consiste em saber se é ou não permitida a escolha
da lei mesmo naqueles domínios onde a lei portuguesa (as regras de
conflitos do direito português) não consagram a autonomia da vontade em
direito internacional privado. Face ao teor do ar. 33.º, n.º 2, a
resposta parece dever ser positiva.
Uma
segunda questão tem a ver com o próprio conceito de “direito”. Está
em causa saber se as partes só podem seleccionar uma ordem jurídica
estadual ou se podem recorrer também à lex
mercatoria, aos princípios gerais de direito ou ao direito
internacional público.
A
Exposição de Motivos que acompanhava a proposta de lei que está na
origem do diploma em apreço (a Proposta de Lei n.º 34/IV) parece
inculcar que as partes só podem designar o direito de um Estado,
excluindo-se, por conseguinte, a possibilidade de remissão para
ordenamentos não-estaduais ou para a lex mercatoria. Todavia, esta opinião não é pacífica.
Uma
derradeira questão prende-se com a escolha pelos árbitros direito aplicável,
caso as partes não o façam. Parece decorrer da letra da lei que se
confiou aos árbitros a determinação da lei material directamente aplicável,
sem necessidade de elegerem, portanto, a regra de conflitos mais adequada
ao litígio. Quanto a saber qual seja e como se determina o “direito
mais apropriado” ao litígio a lei não dá nenhuma indicação segura,
restando confiar no prudente arbítrio do julgador.
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