O
reconhecimento
e execução
de
sentenças
estrangeiras
Uma vez
obtida uma decisão (judicial ou arbitral) definitiva, interessa naturalmente à
parte que obteve ganho de causa que a mesma produza os seus efeitos úteis
normais e seja reconhecida como definitiva nas ordens jurídicas que mantêm um
contacto mais estreito com a situação. Assim, por exemplo, se a sociedade A,
que tem sede e exerce a sua actividade comercial no Estado “x”, propõe nos
tribunais deste mesmo Estado uma acção para cobrança do preço de
determinadas mercadorias que vendeu à empresa B, que apenas tem bens no Estado
“y”, e vem a obter sentença condenatória da sociedade B, que se torna
definitiva, interessa à empresa A que tal sentença seja reconhecida e possa
ser executada no Estado “y”, pois é aí que, na falta de pagamento voluntário,
poderá conseguir o cumprimento coercivo (pela força) da referida obrigação.
No exemplo
apresentado, está fora de causa que os tribunais do Estado “x” possam
exercer, sem mais, os seus poderes coercitivos no Estado “y”. Desde logo,
porque isso implicaria uma violação da soberania do Estado “y”. Antes o
que a sociedade A terá de fazer é obter o “reconhecimento” da sentença no
Estado “y” e adoptar aí, se necessário através dos tribunais deste
Estado, as providências destinadas à efectiva tutela dos seus direitos.
Ora, tal
como acontece com a definição da competência internacional dos tribunais, a
matéria do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras é geralmente
regulada pelo direito interno de cada Estado, divergindo muito o modo como as
diferentes ordens jurídicas encaram o problema. Assim, as soluções possíveis
vão desde a denegação pura e simples do reconhecimento de sentenças
estrangeiras até ao reconhecimento automático de, pelo menos, alguns dos seus
efeitos.
Com vista a
obviar aos inconvenientes da dispersão legislativa, também neste domínio se
verificaram tentativas de uniformização de regimes por via da adopção de
convenções internacionais. Avultam, pela sua especial importância para o comércio
internacional e pelo alargado âmbito de aplicação que lograram obter, a que
conduziu à celebração das Convenções de Bruxelas e de Lugano, já
anteriormente referidas, e a que culminou na aprovação da Convenção sobre o
Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, concluída
em Nova Iorque em 10.6.1958 (Convenção
de Nova Iorque).
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O regime instituído pelas Convenções de
Bruxelas e de Lugano
A Convenção
de Bruxelas (tal como a de Lugano, aliás) caracteriza-se por ser uma convenção
dupla:contém, simultaneamente, o regime da competência internacional dos
tribunais dos Estados Contratantes e o regime do reconhecimento e execução das
sentenças proferidas por esses tribunais. E, na verdade, um dos principais
objectivos visados pela Convenção consistiu em simplificar os procedimentos
relativos ao reconhecimento e execução das sentenças, de modo a viabilizar a
sua livre circulação dentro do território da União Europeia, condição
primordial para o estabelecimento de um verdadeiro mercado comum.
As disposições
convencionais relativas ao reconhecimento e execução das sentenças
estrangeiras aplicam-se a todas as decisões proferidas pelos tribunais dos
Estados Contratantes, no domínio recortado pelo art. 1.º da Convenção,
independentemente de o réu estar ou não domiciliado no território de um
desses Estados. Apenas se exige (art. 54.º) que:
a)
a Convenção esteja em vigor no Estado requerido;
b)
que a sentença tenha sido proferida após a entrada em vigor da Convenção
no Estado de origem; e
c)
que a acção onde a decisão é proferida tenha sido, também ela,
intentada após a entrada em vigor da Convenção no Estado de origem, ou, tendo
sido intentada em data anterior, que as regras de competência aplicadas sejam
conformes com as previstas, quer no título II da Convenção, quer em convenção
em vigor entre o Estado de origem e o Estado requerido aquando da instauração
da acção.
A Convenção
estabelece uma distinção essencial entre o reconhecimento
e a execução das sentenças estrangeiras. A referida distinção relaciona-se
com o tipo de efeitos que uma sentença pode produzir enquanto acto
jurisdicional. Assim, ao passo que o reconhecimento
se refere à generalidade dos efeitos da sentença (efeito de caso julgado,
eventual efeito constitutivo, efeitos probatórios, etc.), a execução
refere-se ao efeito executivo: a susceptibilidade de a sentença servir de base
a actos de coerção sobre as pessoas ou sobre os bens, na hipótese de as decisões
nela contidas não serem voluntariamente acatadas pela parte vencida.
De acordo
com o regime convencional, o reconhecimento
é, em princípio, automático (ipso iure).
Significa isto que uma sentença estrangeira que caiba no âmbito de aplicação
da Convenção produz, imediatamente e de pleno direito, em qualquer Estado
Contratante, os efeitos que lhe são próprios segundo a lei do Estado de
origem, sem necessidade de recurso prévio a qualquer processo de revisão ou
tendente à sua confirmação. Como se observou, exclui-se deste princípio de
reconhecimento automático o efeito executivo das sentenças.
O recurso a
um processo formal de reconhecimento só se torna necessário quando alguém
impugne a produção dos efeitos da sentença no Estado em que ela é invocada.
Nessa situação, qualquer interessado pode requerer aos tribunais competentes
deste Estado (art. 32.º) o reconhecimento, a título principal, da sentença.
Deve fazê-lo mediante acção especificamente intentada para esse fim e que
segue os trâmites previstos nos arts. 32.º a 49.º da Convenção.
O tribunal
a que é requerido o reconhecimento não pode, em caso algum, efectuar uma revisão
de mérito, ou seja, não pode recusá-lo por considerar que a sentença
estrangeira contém uma decisão injusta ou errada (art. 29.º). O
reconhecimento dó pode ser recusado com fundamento na verificação de uma das
causas previstas nos arts. 27.º e 28.º, a saber:
·
se o reconhecimento
for contrário à ordem pública do Estado requerido;
·
se o acto que
determinou o início da instância ou acto equivalente não tiver sido
comunicado ou notificado ao requerido revel, regularmente e em tempo útil, de
forma a permitir-lhe a defesa;
·
se a decisão for
inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado
requerido;
·
se o tribunal do
Estado de origem, ao proferir a sua decisão, tiver desrespeitado regras de
direito internacional privado do Estado requerido na apreciação de questão
relativa ao estado ou à capacidade das pessoas singulares, aos regimes
matrimoniais, aos testamentos e às sucessões, a não ser que a sua decisão
conduza ao mesmo resultado a que se chegaria se tivessem sido aplicadas as
regras de direito internacional privado do Estado requerido;
·
se a decisão for
inconciliável com outra anteriormente proferida num Estado não Contratante
entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir,
desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias
para ser reconhecida no Estado requerido;
·
se tiverem sido
desrespeitadas as regras de competência internacional que a Convenção prevê
nas secções III, IV e V do título II (onde se estabelecem as competências
protectivas dos segurados e dos consumidores, e as competências exclusivas);
·
se, tendo a acção
sido proposta contra pessoa que não se encontrava domiciliada num dos Estados
Contratantes, a competência do tribunal do Estado de origem se tiver fundado
numa das regras de competência exorbitante referidas no art. 3.º, e o Estado
requerido se tiver vinculado perante um Estado terceiro, nos termos de uma
convenção relativa ao reconhecimento e execução de decisões, a não
reconhecer tais decisões (art. 59.º).
Como se
referiu, a Convenção não estendeu o benefício do reconhecimento automático
ao efeito executivo das sentenças. Este só se produzirá num Estado
Contratante diferente daquele onde a decisão foi proferida após a sentença
ter sido declarada executória pelos
tribunais do Estado onde é invocada. Para isso, qualquer interessado na execução
da sentença deve propor um processo de exequatur
junto dos tribunais competentes do Estado requerido, processo esse que é
decidido em prazo curto e sem a audiência da parte contrária (art. 34.º, §
1).
A atribuição
de força executiva à sentença estrangeira só pode ser negada se se verificar
um dos fundamentos de recusa do reconhecimento previstos nos arts. 27.º e 28.º,
a que acima nos referimos (art. 34.º, § 2).
Se a execução
for autorizada, a parte contra a qual a é promovida pode interpor recurso da
decisão no prazo de um mês a contar da sua notificação (art. 36.º, § 1).
É, pois, nesta fase que o executado tem a possibilidade de expor os seus pontos
de vista. O recurso segue os termos dos arts. 36.º e seguintes da Convenção.
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O sistema português autónomo
O sistema
português de reconhecimento de sentenças estrangeiras é um tanto diverso do
regime convencional que acabamos de expor. Na verdade, segundo o direito português
autónomo, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal
estrangeiro, produz efeitos em Portugal sem previamente ter sido revista e
confirmada pelos tribunais portugueses. Não vigora, por conseguinte, o princípio
do reconhecimento automático dos efeitos essenciais das sentenças
estrangeiras, tornando-se sempre necessária a propositura de uma acção
especial que segue os termos dos arts. 1094.º e seguintes do Código de
Processo Civil.
O sistema
português é, deste modo, um sistema de reconhecimento por via de revisão.
Mas só se aplica, naturalmente, quando não exista tratado ou lei especial que
derrogue a sua aplicação. Por conseguinte, o interessado no reconhecimento
duma sentença estrangeira só é obrigado a lançar mão do processo de revisão
previsto e regulado no direito português quando não esteja em causa sentença
que caiba no âmbito de aplicação das Convenções de Bruxelas e de Lugano ou
de qualquer outra que o Estado português tenha ratificado.
O art.
1096.º do Código de Processo Civil enuncia as condições ou os requisitos que
terão de ser satisfeitos para que a sentença estrangeira possa ser reconhecida
no nosso país. Torna-se necessário:
a)
que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento que incorpore a
sentença nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b)
que a sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país de
origem;
c)
que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido
provocada em fraude à lei e que não verse sobre matéria da exclusiva competência
dos tribunais portugueses (cfr. art. 65.º-A do Código de Processo Civil);
d)
que não tenha sido intentada junto dos tribunais portugueses, em data
anterior à da propositura da acção no estrangeiro, uma acção idêntica,
entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, ou que não haja sido proferida
pelos tribunais portugueses decisão incompatível com a sentença revidenda;
e)
que o réu tenha sido
regularmente citado para a acção e que no processo hajam sido observados os
princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f)
que a sentença estrangeira não contenha decisão cujo reconhecimento
conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem
pública internacional do Estado português.
O controlo
da verificação dos requisitos que acabamos de referir é feito pelo Tribunal
da Relação a que seja submetido o processo de reconhecimento. Todavia, só se
exige que o tribunal averigúe oficiosamente se concorrem as condições
indicadas nas alíneas a) e f) do art. 1096.º, podendo presumir a verificação
das restantes (art. 1101.º do Código de Processo Civil).
A parte
interessada em evitar a produção dos efeitos da sentença no nosso país pode
impugnar o pedido de reconhecimento com fundamento na falta de qualquer dos
requisitos mencionados no art. 1096.º (art. 1100.º, n.º 1). Se se tratar de
pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa e a sentença
estrangeira tiver sido proferida contra ela, pode também impugnar o pedido se
demonstrar que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o
tribunal estrangeiro tivesse aplicado a lei portuguesa, na hipótese de, segundo
as regras de conflitos do direito português, ser esta a lei aplicável.
Numa
apreciação conclusiva pode dizer-se que o regime português não se mostra
muito mais desfavorável ao reconhecimento de sentenças estrangeiras que o
regime convencional que anteriormente analisámos. Trata-se, é certo, de um
sistema de revisão ou controlo prévio, que, por isso, exige sempre que o
interessado proponha uma acção especial perante os tribunais portugueses. Porém,
nas suas linhas essenciais, configura-se como um sistema de revisão puramente
formal (e não de mérito), em que as condições exigidas para o reconhecimento
não divergem significativamente das previstas na Convenção de Bruxelas.
Constitui assinalável excepção o verdadeiro privilégio concedido aos cidadãos
e às pessoas colectivas nacionais pelo art. 1100.º, n.º 2, do Código de
Processo Civil, que não tem paralelo no regime convencional.
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O reconhecimento de sentenças arbitrais
estrangeiras
Estado actual do problema no direito português
O regime do
reconhecimento e execução das sentenças arbitrais estrangeiras, no direito
português, mostra-se relativamente complexo, dado que para a sua definição
concorrem diversos textos legislativos, uns de fonte interna, outros de fonte
internacional. O que não significa, porém, que, no nosso país, o
reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira se apresente dificultado.
Muito pelo contrário.
A primeira
questão que neste domínio se suscita é, precisamente, a de saber quando é
que uma sentença arbitral carece de ser submetida a um processo de
reconhecimento, para produzir efeitos em Portugal. Por outras palavras, trata-se
de saber quando é que uma sentença deste tipo é considerada estrangeira.
Vimos acima
que, tendo em conta o âmbito de aplicação no espaço da Lei n.º 31/86 e
apesar das dificuldades interpretativas decorrentes da letra do art. 1094.º, n.º
1, do Código de Processo Civil – onde se alude a decisões “proferidas por
árbitros no estrangeiro” – afigura-se ser seguro que só as decisões
emitidas em arbitragens estrangeiras (as que decorrem fora do território
nacional) necessitam de ser reconhecidas em Portugal. Para esse efeito,
revela-se indiferente o lugar onde a decisão foi proferida (se em território
português ou em território estrangeiro). O que importa é que o processo que
conduziu à prolação da decisão arbitral tenha decorrido em território
nacional, sujeitando-se, desse modo, às prescrições da lei portuguesa de
arbitragem voluntária.
À primeira
vista, este critério pode levantar algumas dificuldades de conjugação do
direito português com o regime de reconhecimento emanado da Convenção de Nova
Iorque de 1958, nos casos em que o processo arbitral tenha corrido os seus
termos em território nacional mas em que a decisão haja sido proferida no
território de um outro Estado parte da Convenção. A referida decisão será
considerada como nacional – e, por isso, não carecida de reconhecimento –,
mas ficará também submetida ao regime convencional. Todavia, a aludida
dificuldade é facilmente superada pela aplicação do princípio do tratamento
mais favorável, consagrado no art. VII (n.º 1, segunda parte) da Convenção,
podendo o interessado prevalecer-se da sentença em Portugal sem necessidade de
obter o seu reconhecimento prévio.
Ao
reconhecimento das sentenças arbitrais que, segundo o direito português, devam
considerar-se estrangeiras aplica-se o processo de revisão regulado nos arts.
1094.º e segs. do Código de Processo Civil (cfr., supra), com as necessárias adaptações (art. 1097.º do mesmo
diploma). Fica, porém, ressalvada a prevalência dos regimes especiais
decorrentes das convenções internacionais de que Portugal é parte.
Tendo em
atenção o disposto no seu art. 1.º, § 2.º, n.º 4, será aparentemente nula
a relevância das Convenções de Bruxelas e de Lugano para a matéria em apreço.
Mas não é exactamente assim, dado que, por um lado, se mostra controvertido o
alcance de tal exclusão e, por outro lado, existem diversos aspectos em que o
regime das referidas Convenções pode contender com o reconhecimento, em
Portugal, de decisões arbitrais estrangeiras. Será o caso, por exemplo, de ser
submetido à apreciação de um tribunal arbitral um litígio com violação das
regras convencionais que atribuem competência exclusiva aos tribunais de um
Estado Contratante. Numa tal situação, a convenção de arbitragem que cometeu
ao tribunal arbitral a apreciação do litígio não pode deixar de ser
considerada inválida e, por isso, deverá recusar-se o reconhecimento da sentença
arbitral.
Não
obstante o exposto, existem outras convenções que vinculam o Estado português
que têm directamente por objecto a regulamentação do reconhecimento de sentenças
arbitrais estrangeiras. De entre elas, a que indubitavelmente assume maior
significado é a Convenção de Nova Iorque de 1958, dado que actualmente vigora
em mais de 100 países, incluindo a maior parte daqueles com que Portugal mantém
relações económicas e comerciais.
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A Convenção de Nova Iorque
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