Objectivos do
Presente Manual
Com a edição
do presente Manual visa-se dar satisfação a necessidades pedagógicas precisas
de um grupo particular de destinatários: os empresários e outros agentes económicos
que desenvolvem ou pretendem desenvolver a sua actividade fora dos limites do
território nacional.
Por essa
razão, o presente Manual não tem a veleidade de constituir uma obra de dogmática
jurídica. Antes pretende facultar, através de uma linguagem simples, acessível
a «não-iniciados», uma visão geral de alguns problemas do comércio jurídico
internacional.
Na verdade,
é apenas disso que se trata: de oferecer um panorama muito geral de alguns dos
problemas que o comércio entre povos e nações suscita. Focar-se-ão apenas
alguns temas básicos ou mais recorrentes, não se entrando na análise de
problemáticas específicas.
Os
objectivos traçados e a qualidade dos destinatários exigem, no entanto, que,
antes de prosseguir se forneça uma explicitação sucinta de alguns conceitos
jurídicos fundamentais, de modo a facilitar a compreensão dos temas abordados
e evitar repetições desnecessárias.
O
comércio internacional e os
problemas jurídicos
que suscita
Numa noção
preliminar, o comércio internacional é aquele que ultrapassa as fronteiras de
um único Estado. De igual modo, numa primeira e muito intuitiva noção, o
direito do comércio internacional será o conjunto de normas que rege todos os
aspectos da vida das empresas quando, na sua actividade ou na sua existência,
estabeleçam ligações com mais do que um Estado.
As noções
muito vagas que acabamos de dar logo nos deixam entrever serem muitos e de
diversa índole os problemas jurídicos que o comércio internacional suscita.
Tal como se infere que as normas jurídicas que confluem ou podem confluir na
resolução desses problemas têm natureza diversificada e proteiforme.
Com
efeito, podem interferir no regime das trocas internacionais, tanto normas de
direito privado – as relativas ao estatuto da empresa e dos seus dirigentes,
à respectiva capacidade para a prática de actos fora das fronteiras do país a
que pertencem, à validade desses actos, etc. – como normas de direito
público – relativas, por exemplo, ao direito da concorrência e aos direitos
dos estrangeiros. De outra perspectiva, convergem nessa regulamentação dos
problemas do comércio internacional disposições oriundas de fontes diversas:
leis estaduais, actos comunitários, tratados internacionais, regras
consuetudinárias, etc.
Mostrando-se
impossível abarcar nos limites deste trabalho toda a sorte de problemas jurídicos
implicados pelo comércio internacional, iremos concentrar-nos, como acima foi
dito, em apenas alguns deles, tendo especialmente em vista tão-somente as relações
internacionais de carácter privado.
Os
conflitos de leis e os
modos de os resolver
Se as relações
comerciais internacionais se projectam para além das fronteiras de um único
Estado, decorrendo sob a égide de ordens jurídicas estaduais diferentes, o
primeiro problema jurídico que as mesmas colocam é, precisamente, o dos «conflitos
de leis (no espaço)». Este problema é originado pela circunstância de as
ordens jurídicas dos diferentes países divergirem na regulamentação das
situações concretas da vida. Assim, por exemplo, caso surja um diferendo a
respeito da interpretação ou execução de um contrato de fornecimento de matérias-
primas celebrado entre a empresa A, sediada em Portugal, e a empresa B,
estabelecida em Inglaterra, tal diferendo pode ser resolvido de forma diferente
consoante seja aplicado ao caso o direito português ou, pelo contrário, o
direito inglês. Alude-se, pois, à diversidade das «normas jurídicas
materiais» dos diferentes sistemas jurídicos, ou seja, daquelas normas que
regulam as situações concretas, que nos dão resposta para os problemas do
dia-a-dia. Mas, como é lógico, os conflitos entre normas materiais oriundas de
sistemas jurídicos diferentes são, muitas vezes, tão-só conflitos
potenciais, pois não está excluído que, na sua aplicação aos casos
concretos da vida, tais normas apresentem soluções idênticas.
Estas
normas materiais, quando são editadas pelos legisladores nacionais, têm
sobretudo em vista resolver os problemas que se colocam internamente, dentro das
fronteiras do Estado que as promulga. Porém, à partida, nada obsta a que elas
possam ser aplicadas a situações «internacionais», situações que estão em
contacto com mais do que uma ordem jurídica.
Está bem
de ver que à resolução de uma dada questão jurídica, suscitada por uma relação
privada internacional, se não podem aplicar todas as leis que com essa relação
tenham um qualquer contacto de natureza espacial. Deverá antes seleccionar-se
uma dessas leis, reconhecendo-se-lhe competência para resolver a referida questão
jurídica. Tradicionalmente, tal selecção é feita por uma regra de conflitos
(de leis), uma norma jurídica que tem precisamente por função dizer qual das
leis em contacto com a situação é competente para a regular.
Tais regras
de conflitos existem em todos os ordenamentos jurídicos e a sua interpretação
e aplicação levantam problemas delicados. Mas não faltam vozes que propugnam
outros modos de resolver os conflitos entre as leis dos diferentes países. Aliás,
a melhor forma de os resolver seria, naturalmente, eliminá-los, mediante a
uniformização ou harmonização de todas as leis do mundo. Todavia, na ausência
de um legislador internacional, dotado de reais poderes para impor o acatamento
dos seus preceitos pelos órgãos legislativos e jurisdicionais de cada Estado,
tal tarefa só limitadamente poderá conduzir a resultados positivos, em geral
através da adesão voluntária dos Estados aos tratados que intentam a unificação
do direito privado.
Posto isto,
não falta, como se disse, quem proponha outras vias de resolução dos
conflitos de leis, para além (ou em substituição) das normas de conflitos.
Uma dessas vias consistiria na adopção, por cada Estado, de regras jurídicas
especificamente adaptadas às características próprias do comércio
internacional. Para outros, preferível seria que as trocas internacionais
fossem regidas pelas regras que os próprios comerciantes desenvolvem na sua prática
comercial além-fronteiras, regras esses que resultam da observância de usos e
princípios comummente adoptados pelos agentes económicos. Assim se originaria
um conjunto muito heterogéneo de realidades normativas (cláusulas-tipo,
modelos contratuais padronizados, regras consuetudinárias, definições de
termos utilizados no comércio internacional e regras interpretativas
associadas) a que se convencionou chamar lex
mercatoria.
Todavia,
mau grado a inegável importância de todas as sugestões e tentativas que se
fizeram para encontrar soluções alternativas ao método das regras de
conflitos, pode-se dizer, com segurança, que estas continuam a constituir o
instrumento privilegiado de resolução dos conflitos entre as leis dos diversos
povos e nações.
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