A descrição da actual situação da economia mundial, com o tendencial desaparecimento das identidades económicas nacionais, legitima a dúvida sobre a pertinência do estudo da Economia Internacional, entendida como aquela que se faz entre as nações.
Não estamos aqui a falar da "Nova Economia Internacional" "à Krugman", isto é, aquela que, reconhecendo a desadequação dos modelos clássicos de comércio internacional, propõe novos modelos que integrem aspectos relevantes das actuais estruturas tecnológica e de mercado, que já mencionámos no ponto anterior. Estamos, sim, a referir-nos à necessidade de uma abordagem diferente, não necessariamente centrada no comércio entendido como
movimento de bens, serviços e mesmo factores de produção.
Krugman, no citado artigo da Fortune, menciona já o comércio dos factores de produção, incluindo o trabalho. É legítimo tratar o trabalho como as peças para automóveis? Antes de mais, a mobilidade do trabalho é muitíssimo mais baixa que a das peças de automóvel. R. Reich (1991), na sua obra
The Work of the Nations, alertou para esse facto no contexto da evolução da
economia mundializada (e é este, curiosamente, o título da tradução francesa da sua obra -
L'Économie Mondialisée). Afirma ele que já não haverá economias nacionais, nem produtos e tecnologias nacionais, nem empresas nacionais, nem indústrias nacionais. Um só elemento permanecerá enraizado no interior do país: os indivíduos que o constituem. Reich salienta que mesmo num país como os EUA, conhecido pela grande mobilidade interna dos seus habitantes, a mobilidade do factor trabalho nada tem a ver com a das mercadorias, matérias-primas e
capital, e muito menos quando estiver em jogo a mudança de país.
Em nosso entender, é o factor humano que, em última análise, deve ser o autor e o destinatário da
economia, aquele que está no cerne da revolução em curso. Desde já, há que dar ênfase a uma evidente heterogeneidade desse factor relativamente à mobilidade: é que há uma elite para quem a mobilidade é enorme e cujas consequências Reich já apontava, designadamente o facto de os indivíduos melhor colocados para triunfar no mercado mundial serem tentados a relaxar os laços com o seu país, desinteresando-se, por isso, da sorte dos menos favorecidos.
R. Kanter (1995) vai mesmo mais longe, ratificando integralmente o nosso foco no factor humano, ao salientar que, se na era industrial a divisão de classe era feita entre o
capital e o trabalho ou entre gestores e trabalhadores, a divisão que emerge na
economia da informação é entre o que designa por cosmopolitas e
locais, isto é entre "pessoas" e "pessoas", sem qualquer referência nacional ou até funcional.
Assim, descreve os cosmopolitas como:
"portadores de cartão da classe mundial - composto por passaporte, bilhete de avião e cartão de crédito. Dirigem empresas que estão ligadas a cadeias globais. À vontade na maioria dos
locais e capazes de entender as diferenças entre eles e de fazer as pontes necessárias, os
'cosmopolitas' possuem recursos portáteis e uma visão global. Mas não é o viajar que os define (…) é o modo de pensar (…) eles criam e tornam-se parte de uma cultura mais universal que transcende as particularidades de qualquer local (…)."
Os locais são, naturalmente, definidos pelo lugar a que se encontram amarrados, embora R. Kanter ainda faça uma distinção entre "locais abertos ao mundo", que o entendem mas optam por não entrar no jogo, e os "outros locais", a grande maioria, sem essa possibilidade.
Como é evidente, desta dicotomia decorre que o "comércio" do factor humano se pode fazer basicamente com os
cosmopolitas, concentrando-se assim um know-how em poucos centros de decisão, habitualmente não nas mãos dos governos dos países, e potenciando o crescimento das já gritantes assimetrias.
Estas assimetrias serão ainda mais preocupantes se introduzirmos a nova vertente da mundialização: a tecnologia digital e a sua expressão mais viva: a
Internet.
Vale a pena citar de novo Tapscott num livro mais recente (1998), Growing up
Digital, com o subtítulo elucidativo The Rise of the Net Generation, em que evidencia o facto de, pela primeira vez na história, as crianças se sentirem mais à vontade, com maior conhecimento e maior nível "literário" (entenda-se de leitura em computador e na Internet) que os seus pais, e até com maior capacidade de utilizar instrumentos de aprendizagem e fontes de informação que os seus próprios professores.
Não discutindo aqui a natureza e os perigos desta aprendizagem e a óbvia necessidade de alterar os métodos de ensino, é curial ressaltar dois pontos ligados a este facto indisputável: a
natureza mundial desta aprendizagem e o agravamento das assimetrias entre pessoas e entre
nações.
O primeiro expressa-se exemplarmente no modo como o livro foi escrito: na Internet, por uma equipa de investigação que teve a colaboração de várias centenas de crianças e adultos localizados em todos os continentes, com a análise a ser conduzida por um núcleo central em cinco
locais, partilhando um espaço de trabalho digital, utilizando correio electrónico e conferências através de computador, sendo a Web a principal fonte de referências. De facto, a "vizinhança" desta nova geração e os padrões de vida e de valores que ela comporta vão muito para além do local onde vive. A sua visão (se assim se pode chamar) é do tipo "cosmopolita" - dando razão a R. Kanter sobre não ser o viajar o distintivo do cosmopolita - e a sua abordagem (que inclui já muitas das suas compras) é verdadeiramente mundial.
Quanto ao problema do agravamento das assimetrias, o melhor é dar a palavra ao insuspeito Tapscott que, na sequência do sério mas tão esquecido aviso do que chamou o "lado negro da
economia digital" no seu primeiro livro sobre o tema, alerta para a clivagem que o fenómeno digital vai criar logo à partida entre as crianças, dividindo-as entre a
Net-Generation e a Not-Generation. E defende que não é um fenómeno transitório, mesmo nos EUA, revelando a sua investigação que esta clivagem não está a reduzir-se mas sim a aumentar e a cavar o fosso já existente:
"Have-nots become know-nots and do-nots".
Se estas são as características da mundialização, é possível estudar a
economia das nações sem as ter em conta, mesmo que elas sejam de difícil modelação, impedindo a construção de teorias "elegantes"?
Em nosso entender, estudar Economia Internacional é estudar a Economia Mundializada vista através das suas expressões
locais, uma vez que, mesmo com Internet e com o mundo interligado, os locais permanecem e as pessoas também, e muitas das actividades económicas, as materiais, têm necessariamente uma radicação territorial. Em apoio desta nossa posição recorremos a P. Krugman (1995), que chama a atenção para, nas suas palavras, o longamente desprezado campo da
geografia económica. Define-o como a localização da actividade no espaço e, não obstante o seu óbvio interesse prático e intelectual, tem estado ausente do núcleo padrão da teoria económica.
Mais interessante ainda é o facto de ligar este esquecimento ao da teoria do desenvolvimento
económico, que, como sabemos, recebe contribuições seminais das ideias centrais da Economia Internacional nas suas abordagens clássicas. Segundo estas, o comércio internacional é um veículo imprescindível para o desenvolvimento das nações.
Mas, o mais curioso é atribuir a mesma causa aos dois "esquecimentos": a ausência de modelos adequados para divulgar assuntos indiscutivelmente relevantes.
É por isso legítimo defender que, com ou sem modelos, é importante estudar a nova
economia mundializada e o modo como as diversas nações nela se posicionam, sem esquecer a necessidade de redescobrir o papel dos Estados nacionais neste novo contexto. É evidente que não cabe a um Manual como este fazê-lo, mas cabe-lhe seguramente alertar para o facto e "ler" as abordagens estabelecidas, que vai descrever sumariamente nos próximos capítulos, a esta luz.
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