3.4
AS DIFERENÇAS DE RECURSOS 
E O
MODELO DE HECKSCHER-OHLIN

A teoria de Ricardo fundamenta as vantagens do comércio externo nas persistentes diferenças de produtividade do factor trabalho, mas não faz qualquer tentativa para explicar essas diferenças. E é bem evidente que essa perspectiva estava longe de satisfazer os economistas, tanto mais que, contrariamente às mais genuínas predições da teoria, o comércio crescia enormemente entre países com níveis de desenvolvimento próximos, como era o caso dos EUA e de vários países europeus.
A utilização de factores específicos, ensaiada no ponto anterior, é um passo no sentido da obtenção de uma explicação mais abrangente, mas a lógica da troca continua centrada na diferença relativa do factor trabalho.
O passo em frente é dado no início do século XX por E. Heckscher, cuja contribuição recebeu pouca atenção por ter sido escrita em sueco. O seu trabalho foi retomado e desenvolvido na tese de doutoramento de um seu aluno, B. Ohlin, também escrita em sueco, mas mais tarde publicada em inglês pela Harvard University. Nascia, assim, o modelo de Heckscher-Ohlin (MHO), cujas hipóteses revestiam uma dupla natureza: por um lado, referiam-se a características dos países, admitindo que eles diferiam entre si pelos recursos produtivos que possuíam; por outro lado, centravam-se nos produtos, considerando que as suas diferenças radicavam nos factores necessários para os produzir.
Esta descrição parece reconduzir-nos ao modelo com factores específicos, mas, de facto, há uma diferença fundamental: no caso do MHO não há necessariamente factores que se aplicam em exclusivo na obtenção de um produto, mas sim proporções diferentes entre os diferentes produtos, em resultado do que é, verdadeiramente, a sua contribuição seminal - a diferença da dotação de recursos entre países.
Com base neste pressuposto, Heckscher-Ohlin (HO) modificam as hipóteses do modelo ricardiano, fazendo cair as que admitem que o trabalho é o único factor relevante de produção e que, em consequência, a tecnologia de cada país pode ser completamente descrita pelo conhecimento da quantidade de trabalho incorporada em cada unidade de produto.

Estas hipóteses são substituídas por duas outras que têm que ver com o alargamento do conjunto dos factores de produção:

1ª hipótese
Há dois factores de produção, capital (K) e trabalho (L), recebendo os detentores de capital uma renda (R) pelos serviços prestados pelos seus activos e os trabalhadores um salário (S).

Esta hipótese permite considerar que o número de máquinas que é "combinado" com cada produção se torna um factor essencial na determinação dos padrões de comércio e pode mudar com os preços relativos dos factores.
No modelo clássico também havia máquinas (isto é, capital), mas admitia-se que o factor trabalho usava sempre um número fixo de máquinas na produção de qualquer bem. O abandono desta hipótese leva à possibilidade de substituição entre factores e dá abertura para a outra hipótese:

2ª hipótese
As tecnologias disponíveis para cada país são idênticas.

Isto significa que os produtores de pão dos dois países têm acesso a tecnologias de fabricação idênticas, tal como o têm os produtores de vestuário. Isto não significa que optem por tecnologias idênticas (e toda a novidade do modelo é explicar por que não, embora haja a possibilidade de assim ser).
O que é indiscutível é que, se optassem pelas mesmas tecnologias, desaparecia por completo a fundamentação do comércio internacional do modelo ricardiano.
A estas hipóteses HO acrescentam-se duas outras que configuram as características ligadas ao uso relativo e à dotação dos factores:

3ª hipótese
Em ambos os países a produção de um dos bens (por exemplo, o Vestuário) usa maior quantidade de trabalho por unidade de capital utilizado que o outro bem (no nosso exemplo, o Pão), mantendo-se em ambas as produções as economias de escala constantes.

Esta hipótese evidencia o papel da utilização relativa dos factores entre os dois tipos de produção, garantindo a proporcionalidade entre o volume de factores utilizado e o produto obtido. Permite, além disso, criar dois importantes conceitos, que devem sempre ser "lidos" numa perspectiva de relativismo: 

Próximo conceito

Uma produção de um bem diz-se trabalho intensiva (capital intensiva) relativamente a outro bem se exigir maior (menor) quantidade de trabalho por unidade de capital empregado que a produção desse outro.

Neste contexto, a 3ª hipótese pode ser reescrita de uma forma simples, afirmando-se que a produção de vestuário é mais trabalho intensiva que a do pão, tendo ambas economias de escala constantes.
Por outro lado, se esta hipótese se preocupa com a lógica da intensidade de uso dos factores, a seguinte reflecte a preocupação com a quantidade desses factores, em linha com a novidade fundamental introduzida por HO - a dotação de factores:

4ª hipótese
Os países diferem na sua dotação dos factores de produção, trabalho e capital, sendo um deles relativamente mais abundante em trabalho (por exemplo, Artelândia) e outro em capital (Tecnolândia).

Esta hipótese impõe a clarificação do conceito, também enformado por uma lógica de relativismo, de país com abundância relativa de trabalho (capital).

Próximo conceito

Um país diz-se com abundância de trabalho (capital) em relação a outro se a sua força de trabalho por unidade de stock de capital for maior (menor) que nesse outro.

Próximo conceito

A estas hipóteses HO acrescenta-se pela primeira vez uma outra de um tipo radicalmente ausente nos modelos precedentes - uma hipótese sobre o comportamento da procura:

5ª hipótese
Os gostos são idênticos em ambos os países.

Conquanto esta hipótese seja muito restritiva, tem, em nosso entender, o mérito de relembrar o papel da procura na explicação dos padrões de comércio internacional. Ao fixar esta identidade de gostos entre ambos os países, HO asseguram que as explicações que encontrarem no seu modelo decorrem em exclusivo das condições de oferta.
Com este conjunto de hipóteses formulam então o mais célebre e mais intuitivo teorema da Economia Internacional:

Próximo conceito

Teorema de HO - Um país terá vantagem comparativa no bem (que, consequentemente, exportará) cuja produção usa com maior intensidade o factor em que o país é relativamente mais abundante.

Próximo conceito

No exemplo que vimos utilizando, a exportação preferencial de Artelândia será Vestuário, porque este é relativamente mais intenso em trabalho - o recurso relativamente mais abundante nesse país. Por razões análogas, Tecnolândia exportará preferencialmente Pão.
(Para uma demonstração do teorema, ver, por exemplo, Krugman e Obstfeld, 1997, ou Husted e Melvin, 1997).
Há, contudo, uma característica deste modelo que é diferente das anteriores. Trata-se da especialização incompleta de cada país, que é a solução de equilíbrio mais provável, sem embargo de não se poder eliminar, em certas condições, a especialização completa.

Próximo conceito

Diz-se que um país está incompletamente especializado numa dada produção se, mesmo com comércio internacional estabelecido, continuar a produzir o bem que importa.

Próximo conceito

Quais as razões para este tipo de solução?
Como vimos na apreciação dos modelos anteriores, o ponto óptimo de produção depende dos preços relativos dos bens que se transaccionam internacionalmente (é, aliás, o gradiente desses preços que origina o comércio internacional como expressão das vantagens comparativas). E estes preços são sempre expressão de custos de oportunidade. O que acontece usualmente no contexto do modelo HO é que estes custos de oportunidade são crescentes em resultado da subida de preço do bem que se exporta que, por sua vez, estimula a produção interna de maior quantidade desse bem. Isto implica o desvio de mais recursos, aumentando os custos relativos de produção, de tal modo que essa subida pode exceder a dos preços relativos do bem exportável, impondo, pois, um limite a essa exportação.
O modelo HO reveste outras formas que devem ser relevadas, das quais salientamos duas que se podem configurar como seus corolários:

Próximo conceito

1º - Teorema de igualização dos preços dos factores - Mantendo todas as hipóteses do modelo HO, o comércio internacional livre conduzirá à igualização internacional dos preços dos factores individuais.

Próximo conceito

Isto significa que, nas condições do modelo, haverá tendência para que os salários sejam iguais. A ser assim, a actual globalização teria como efeito uma homogeneização dos salários que está longe de se verificar. Em boa verdade, as indicações mais recentes até apontam para um agravamento dos fossos salariais, o que parece pôr em causa o teorema. E, no entanto, uma leitura atenta da realidade actual não deixa de revelar a tendência expressa no teorema, se nos fixarmos nos salários mais baixos, designadamente os recebidos por trabalhadores indiferenciados. Efectivamente, as deslocalizações de produção que se verificam são expressão dessa tendência, aumentando os salários nos países que a recebem e, em princípio, "diminuindo" os salários nos países que "vêem partir" a produção. Essa diminuição só não se concretiza em virtude de alguma rigidez nos salários dos países de partida, sendo muitas vezes "substituída" por desemprego.
As razões por que o teorema tem tão grande afastamento da realidade dizem respeito apenas às hipóteses fortes que o suportam, nomeadamente a ausência de barreiras ao comércio e o acesso às mesmas tecnologias.

Próximo conceito

2º - Teorema de Stolper-Samuelson - O comércio livre beneficia o factor abundante e penaliza o factor escasso.

No fundo, este teorema, em ligação com o anterior, retoma os efeitos do comércio internacional sobre a repartição do rendimento, evidenciando quem são os ganhadores e os perdedores. Percebe-se, por isso, e retomaremos o problema no próximo capítulo, que haja quem se oponha ao comércio internacional (os perdedores) e quem o favoreça com toda a convicção (os ganhadores).
Vários testes empíricos têm sido desenvolvidos a propósito deste modelo, mas o mais famoso e controverso é, indiscutivelmente, o levado a cabo por W. Leontief nos anos 50, que achou que a economia americana não respeitava o padrão previsto no modelo, originando o que foi designado por paradoxo de Leontief. Utilizando uma matriz de relações industriais para a economia americana, Leontief achou que as exportações americanas tendiam a basear-se nas indústrias trabalho-intensivas, enquanto as suas importações eram relativamente mais capital-intensivas, contrariando as expectativas que a aplicação do modelo levantaria. A explicação do paradoxo foi alvo de várias abordagens, nomeadamente pelo próprio Leontief. Este sugeriu, então, a ultrapassagem da hipótese de igualdade de produtividades entre os trabalhadores americanos e os estrangeiros, admitindo, antes, o que designou por superioridade da produtividade do trabalhador americano, que considerou equivalente a uma dotação de recursos humanos relativamente abundante, reconciliando assim a sua investigação com as previsões do modelo HO.
Outros desenvolvimentos se seguiram na discussão deste paradoxo, alguns dos quais chegaram ao ponto de afirmar que Leontief provara que o Teorema HO estava errado, o que, como vimos, nem o próprio Samuelson acreditou.
Em conclusão, as evidências empíricas sobre a aplicação do modelo HO são equívocas, o que conduz à legítima hipótese de que as dotações dos recursos não conseguem explicar só por si o padrão do comércio externo ou os preços no mercado mundial. No entanto, com todas as suas insuficiências, este modelo é muito útil para analisar os efeitos do comércio sobre a distribuição do rendimento.

 

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
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