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QUOTAS E OUTRAS BARREIRAS NÃO TARIFÁRIAS

Apesar de as tarifas serem a prática mais directa e mais conhecida de barreiras ao comércio internacional, persistem outras formas de restrição com efeitos menos claros que as tarifas, destacando-se a imposição de quotas às importações, para além de outras práticas “indirectas” como subsídios à exportação, compras públicas, “defesa” de normas de higiene, saúde e segurança, “defesa” de direitos de propriedade, etc.

AS QUOTAS E OS SEUS EFEITOS

Próximo conceito

Quota é qualquer limitação em quantidade ou em valor imposta por um Governo ao comércio de um dado produto.

Se o objectivo de um Governo, em dado momento, é proteger o mercado doméstico de importações, entende-se que uma alternativa à imposição de uma tarifa seja a limitação da quantidade a importar, ou seja, a imposição de uma quota. O limite extremo da quota é o embargo, que equivale ao impedimento total de qualquer importação, quaisquer que sejam as razões invocadas.

Se as tarifas e quotas se perfilam, em princípio, como alternativas, é fundamental procurar distingui-las nos seus efeitos, para que um juízo mais elaborado sobre a escolha possa ser feita, admitindo que alguma das barreiras deve ser introduzida, o que, como já referimos, está longe de ser pacífico.

Vamos tentar ilustrar o efeito da quota através da figura 4.4a)

FIG. 4.4a  Efeitos das Quotas.

Na ausência de qualquer restrição ao comércio, o preço final seria pi (o preço internacional) e a quantidade importada qi  – qr. O governo, perante tal volume de importações que consideraria exagerado, reagiria e estabeleceria uma quota iqual a Q – qr, processando-se, em princípio, a importação ao preço pi. Só que tal corresponderia a uma oferta total, Q, representada pelo ponto P, que não é manifestamente uma solução de equilíbrio no mercado, uma vez que a procura não iguala a oferta. Como não se pode importar mais quantidade a esse preço pi, a oferta interna aparece a suprir a deficiência de procura, conduzindo à quantidade final qf, a que corresponde o preço pf. Admitindo que não há condições para a discriminação de preço neste mercado, esse preço é o que passa a vigorar para toda a quantidade qf, sendo a solução de equilíbrio final a apresentada na figura 4.4b).
 

FIG. 4.4b  Efeitos das Quotas.

Quais são então os efeitos finais visíveis da aplicação da quota?
Tal como na imposição de tarifa, o preço no mercado doméstico é maior que no mercado internacional, a produção interna aumenta e as importações diminuem, havendo perda de bem-estar representada pelas áreas I e III, além da perda do excedente dos consumidores descrita pela área II.
Porém, há uma diferença que não é despicienda: enquanto no caso das tarifas essa área II é apropriada pelo Estado, neste caso existe indeterminação sobre quem vai ser o beneficiário dessa transferência que não é mais que uma renda provocada pela quota.
Em princípio, quem se vai apropriar dessas rendas é quem tiver o direito de fazer essas importações e de as vender no mercado doméstico, o que abre caminho desde logo à discricionaridade e a eventuais favorecimentos.
É claro que nos podemos aproximar da situação da tarifa se o Governo fizer um leilão competitivo das licenças de importação, pois nesse caso é ele quem se vai apropriar da quase totalidade das rendas.
Contudo, como bem referem S. Husted e M. Melvin, existem outros efeitos potencialmente nocivos que estão ausentes nas tarifas, com particular relevo para a possibilidade de abuso de posição monopolista por parte de um eventual monopólio doméstico. É que enquanto a liberdade de importação (com ou sem tarifa) disciplina os produtores domésticos através do mecanismo competitivo, a quota permite a um eventual monopolista dispor da procura residual e, consequentemente, estabelecer a sua lógica monopolista de maximização de lucro, com o natural prejuízo dos consumidores.
Isto significa que os efeitos das quotas vão depender muito da estrutura do mercado doméstico e do modo de as fixar e administrar.
Há, no entanto, um tipo relativamente recente de quotas que merecem uma menção especial,
as restrições voluntárias à exportação (RVE), encaradas por alguns autores como um caso em que o Governo concede aos estrangeiros as licenças ligadas às quotas. Porém, esta interpretação é, em nossa opinião, “forçada” se tivermos em atenção quer a definição das RVE, quer as condições concretas das suas mais famosas aplicações.

Restrição voluntária à exportação é um acordo entre países importadores e exportadores através do qual os países exportadores concordam na limitação da quantidade que exportam.

De facto, decorre da definição que não há uma imposição unilateral de uma quota para proteger produtores domésticos, atendendo-se aos interesses dos exportadores que aceitam as RVE na expectativa de não terem de suportar outros tipos de retaliação. Esperam ainda auferir algumas contrapartidas, designadamente as rendas proporcionadas pelas quotas, o que leva Krugman e Obstfeld a afirmar que as RVE são sempre mais prejudiciais para os países importadores que as tarifas.
Os exemplos mais famosos de aplicação deste tipo de restrições são as importações de automóveis japoneses pelos EUA no início da década de oitenta e o Acordo Multififbras, tendo este a particularidade de envolver 22 países que estabeleceram os limites de exportações de alguns tipos de têxteis.

 

A enorme apetência dos consumidores americanos pelos automóveis japoneses e a competitividade que advinha dos seus preços criou uma crise fortíssima na indústria automóvel americana, lançando Detroit, a área por excelência da indústria automóvel americana, numa profunda depressão.
Os exportadores japoneses, perante a situação criada e as naturais reacções que daí decorreram, aceitaram restringir voluntariamente o volume de carros exportados para os EUA, tendo posteriormente verificado enormes rendas, já que as margens que conseguiram obter por cada automóvel vendido foram elevadíssimas. É que aqui não jogou só um efeito de preço que se traduziria na substituição dos “não importados” pelos fabricados internamente. Contou, e muito, a diferenciação do produto, e os muitos fiéis dos modelos japoneses, em lugar de se voltarem de imediato para os automóveis americanos, competiram numa espécie de leilão pela aquisição dos automóveis contingentados, provocando uma subida de preço bem para além daquele que a figura 4.4 sugere e que se baseia na lógica de produtos homogéneos.
Para além dos efeitos das quotas, fica aqui de novo evidenciado o papel da diferença na conquista dos mercados internacionais.

 

 

OUTRAS BARREIRAS NÃO TARIFÁRIAS

Na introdução deste subcapítulo já se enumeraram algumas práticas que configuram manifestamente restrições ao comércio internacional, sendo o seu argumentário centrado no fundamental na defesa dos produtores locais contra práticas alegadamente anti-competitivas (e, como já vimos, alguns situariam aqui as medidas “anti-dumping”, enquanto outros as olham como barreiras ilegítimas ao comércio), ou mesmo na defesa dos consumidores, como é o caso de medidas de higiene e segurança.
Sem qualquer preocupação de generalidade, iremos descrever de forma sucinta as mais comuns intervenções dos Governos que constituem, objectivamente, barreiras ao comércio internacional, independentemente do julgamento dos seus efeitos. 

Subsídios à exportação
Tendo em mente que importação e exportação são duas faces da mesma moeda, é fácil ver que a motivação para um subsídio à exportação é do mesmo tipo que a de uma tarifa sobre as importações, pois ambas as práticas diminuem o preço relativo do produto doméstico, aumentando a sua competitividade. Só que enquanto a tarifa é vista como uma penalização dos competidores externos, o subsídio à exportação “passa” por ser uma medida mais “branda” e menos agressiva, uma vez que é muitas vezes apresentada como uma política de promoção da competitividade, invocando-se mesmo que repõe condições de partida equitativas para as empresas domésticas. Muitos dos Programas de Incentivo recentemente desenvolvidos no âmbito dos Quadros Comunitários de Apoio incorporam, directa ou indirectamente, medidas deste tipo, designadamente nas chamadas acções de apoio à internacionalização.

Compras públicas
Constitui prática corrente, por vezes até fundada em medidas legislativas, a aquisição por parte do Estado de produtos de origem doméstica em desfavor de produtos estrangeiros, mesmo mais baratos, situação facilitada pela natureza destas compras, em muitos casos de grande volume e concretizadas através de concursos e não de leilões em mercado aberto. É comum referir-se que nestes grandes contratos os Governos protegem aqueles que são designados por “campeões nacionais”, isto é, as empresas domésticas de maior dimensão e prestígio interno. No âmbito da União Europeia, a Comissão tem procurado lutar contra estas práticas, reclamando transparência nestes concursos públicos, mas há que reconhecer que a própria opinião pública de cada país também reage negativamente se as empresas domésticas forem preteridas, embora este sentimento se esteja a atenuar. Aliás, no interior da União Europeia, a defesa de um Mercado Único, sem qualquer discriminação entre produtos e serviços comunitários, levou à proibição de uma campanha publicitária baseada na defesa do preenchimento das prateleiras das áreas de distribuição por produtos portugueses.

Normas de higiene e segurança
São regras estabelecidas a nível nacional ou internacional, alegadamente para protecção dos consumidores, conduzindo, por vezes a embargos de produtos. Os problemas com a “doença da vacas loucas”, com “os frangos belgas com dioxinas”, muito recentemente, e com a recorrente “peste suína africana” são exemplos bem conhecidos, sugerindo-se amiúde que há exagero na difusão das notícias para proteger produtores concorrentes e não necessariamente os consumidores. Sob esta epígrafe podemos considerar ainda os designados problemas dedumping ambiental” e de “dumping social”. O primeiro alega que alguns produtos são mais baratos porque não respeitam na sua produção nos países de origem as normas de protecção ambiental que os produtos concorrentes têm de respeitar – como que os obrigando a “importar” poluição (o que nem sempre é verdade) –, reclamando por isso medidas restritivas a importações desse tipo. O segundo alega que alguns produtos são mais competitivos porque no local de produção não são obrigados a respeitar normas de segurança dos trabalhadores nem de higiene e salubridade, conseguindo assim preços mais baixos de uma maneira “desleal”. Consideram que, de certo modo, há uma “importação” de “insegurança e insalubridade”, pois para manterem a competitividade podem ser alegadamente impelidos a criar as mesmas condições de trabalho. Para obstar a esta solução reclamam a aplicação de restrições ao comércio de produtos fabricados nessas condições. De certa forma, a própria reacção à utilização de trabalho infantil pode cair aqui.

Normas técnicas
De algum modo, estas são uma generalização das anteriores aos processos específicos de tecnologia e às características dos produtos e serviços, sendo que a maioria dos exemplos dados no ponto anterior também poderia caber aqui. Em boa verdade, as normas técnicas constituem um entrave ao comércio se forem discricionária e deliberadamente estabelecidas para proteger alguns produtos, sem que se reconheça universalmente razões objectivas para a sua imposição. Um dos exemplos mais gritantes foi o relativo a normas de definição das características dos produtos de cutelaria em Espanha, designadamente de garfos, visando impedir a concorrência triunfante da cutelaria portuguesa. De facto, não se conheciam características somáticas particulares aos habitantes de Espanha, nem qualquer ameaça específica à segurança de quem usava a cutelaria portuguesa, mas as normas impediram durante algum tempo as nossas exportações. Isso foi alterado, mas perderam-se oportunidades e deu-se tempo à reconfiguração da indústria espanhola.

Protecção dos direitos de propriedade
A violação dos direitos conferidos pelas patentes e pelas marcas é uma das razões crescentemente invocadas para o estabelecimento de entraves ao comércio. De facto, assiste-se a um progressivo aumento de “cópias piratas”, isto é, que iludem a protecção das patentes, e de “contrafacções”, ou seja, de produtos semelhantes a marcas registadas, quando não mesmo assumindo-se como produtos dessas marcas. Esta preocupação é tanto mais relevante quanto é certo que a economia se desmaterializa progresivamente, com os serviços a tornarem-se a actividade dominante e a fonte de criação da riqueza a concentrar-se na inovação, no saber e na capacidade de atracção da atenção dos consumidores. Este conjunto de activos intangíveis exige direitos de propriedade muito bem definidos e protegidos, de modo a que se possa de facto remunerar quem cria a riqueza, bem como incentivar essa criação. As dificuldades surgem porque, por um lado, os sistemas legais de direitos de propriedade não são iguais, permitindo-se uma exploração dessa diferença em detrimento dos criadores. Por outro lado, nem mesmo os sistemas existentes são implantados, havendo um grande laxismo na sua aplicação até pelas vantagens que decorrem para as empresas dos países que permitem ou, pelo menos, não reprimem convenientemente essas práticas ilegítimas. Em consequência, reclama-se o impedimento da circulação de produtos que violem os direitos de propriedade.

 

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
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