5.1
TROCA DE PRODUTOS 
E
MOBILIDADE DE FACTORES

A existência de um capítulo sobre mobilidade de factores num pequeno manual de “Economia Internacional” sai fora das perspectivas tradicionais, mas resulta da necessidade de distinguir entre a mobilidade de produtos e a dos factores, esta última crescentemente incrementada pela mundialização da economia . É certo que Krugman e Obstfeld já apresentam um capítulo específico sobre este tema, mas a nossa opção pela colocação do assunto depois da abordagem da política comercial é que rompe com o critério daqueles autores que, em nossa opinião, não assumem integralmente as consequências das diferenças.
De facto, recordam (Cap.7) que a totalidade dos modelos apresentados até aí se centram exclusivamente no comércio internacional, isto é, nas causas e nos efeitos das trocas internacionais de bens e serviços, salientando, em complemento, que estes movimentos não constituem a única forma de integração internacional, sendo relevante aí incluir também
os movimentos internacionais dos factores de produção.
Esta equivalência dos dois tipos de movimentos é assumida com base na afirmada convicção de que os princípios de mobilidade internacional dos factores não diferem essencialmente dos subjacentes ao comércio internacional de bens, donde resulta a defesa de que não há razão para introduzir qualquer modificação radical na sua análise.
Reconhecem, contudo, que apesar desta fundamental semelhança económica entre ambos os movimentos, há diferenças importantes no plano político. Esta observação não pode deixar de lançar algumas perplexidades para os que, como nós, entendem que a economia é “política” no sentido de que os seus efeitos têm que ser julgados com base num paradigma da sociedade. Aliás, essa é, quer se queira, quer não, a implícita posição de quem propõe quaisquer medidas de política no campo da economia. Diferentes propostas de política apenas revelam paradigmas alternativos, mas não a ausência deles. Estes só estarão de facto ausentes nas posições de radicalismo absoluto que defendam que qualquer intervenção no livre comércio e na livre circulação de factores é má, alienando todo e qualquer papel do Estado nesta matéria. Dirão, no máximo, que aceitarão transitoriamente que ele corrija os mecanismos que estejam a perverter essa liberdade, ignorando a circularidade do seu próprio raciocínio.
Por isso mesmo, decidimos introduzir este capítulo controverso que deve ser lido como expressão mais aprofundada das preocupações levantadas no Capítulo 2, algumas das quais serão retomadas e repetidas, pois ele está, em nossa opinião, na base da passagem de uma economia de nações (economia internacional) a uma economia mundial (globalização/mundialização), o que significa, obviamente, uma alteração radical nas condições de desenvolvimento de políticas económicas.
Aliás, entendemos que, no fundo, Krugman e Obstfeld têm intuição desta importância e é por isso mesmo que dedicam um capítulo ao assunto. Não resistimos à tentação de os citar, optando por uma tradução livre.
Depois de procurarem mostrar como os dois movimentos são alternativas económicas (por exemplo, um país abundante em capital pode importar bens intensivos em trabalho ou começar a empregar trabalhadores imigrantes), salientam que estas estratégias alternativas podem ser semelhantes nas suas consequências estritamente económicas, mas são radicalmente diferentes na sua aceitação política.
Como consequência, globalmente, os movimentos internacionais de factores tendem a levantar maiores obstáculos políticos do que o comércio internacional, sendo aqueles mais sujeitos a restrições que estes, designadamente no que toca ao factor humano, já que as restrições à emigração são quase universais. Contudo, concluem que os movimentos de factores são muito importantes, valendo a pena gastar um capítulo a analisá-los.
Estamos de acordo, mesmo que a análise seja o mais ortodoxa possível (e veja-se como Krugman, agora em 1999, condena a ortodoxia e exactamente por causa de um dos factores – o capital ) e mesmo que acabem por concluir que não há mudança de mensagem, isto é, que ambos os movimentos têm os mesmos tipos de origens e produzem resultados similares. Só que isso é, em boa parte, consequência das hipótese que lhes estão subjacentes e que podem ser vivamente contestadas em termos de adesão à realidade. Aliás, como já foi referido no Capítulo 2, R. Reich (1991) mostra bem o equívoco que constitui confundir uma pessoa (um trabalhador – o factor trabalho, imigrante ou não) com uma camisa (um bem trabalho intensivo  importado), não só pela diferente natureza como pela teia de relações que é, afinal, a sede da “economia política”.
No início do seu livro, onde defende a “ideia nacional” (a mais relevante e complexa das “teias” na perspectiva da economia  internacional), afirma claramente que perante as transformações em curso não haverá mais produtos e tecnologias nacionais, nem grandes empresas nacionais, nem indústrias nacionais, tal como não haverá mais economias nacionais no sentido que actualmente assume o termo:

“Um só elemento continuará enraizado no interior das fronteiras do país: os indivíduos que constituem a nação.”

A partir deste pressuposto, entende que a tarefa fundamental de cada país será fazer face às forças centrífugas da economia mundial que tendem a romper os laços entre os seus cidadãos, conduzindo ao crescimento incessante das riquezas dos mais competentes e reduzindo o nível de vida dos menos qualificados. Em sua opinião, isto leva a que os indivíduos mais bem apetrechados para triunfar no mercado mundial estarão tentados a aliviar os seus laços face ao seu país, descomprometendo-se, em consequência, do destino dos seus compatriotas.
É uma visão que antecipa a classificação de “cosmopolitas” e de “locais” que R. Kanter (1995) cunhou, tal como se referiu no Capítulo 2.
Para cotejarmos esta posição com a visão ortodoxa do “mercado internacional” do factor trabalho, centremo-nos no estudo do seu equilíbrio apresentado na figura 5.1

FIG. 5.1  

Aí estão representadas as ofertas de trabalho (definidas a partir da sua produtividade que, em equilíbrio, iguala o salário) doméstico (no eixo da esquerda) e estrangeiro (no eixo da direita). Na situação inicial, aquela em que não há mobilidade do factor trabalho, há Q1 – Qd trabalhadores no mercado doméstico e Qe – Q1 trabalhadores no mercado estrangeiro. Existindo possibilidade de migração, os trabalhadores domésticos são atraídos pelos maiores salários do estrangeiro e deslocam-se para lá, provocando a igualização dos salários nos dois países, equilíbrio descrito pelo ponto O, levando à emigração da quantidade de trabalho Q1 – Q2, do país para o estrangeiro, com as consequências seguintes:

  • redução do volume de emprego no mercado doméstico para Q2 – Qd, com subida de salário do nível A para o nível O;

  • aumento do volume de emprego de Q1 – Q2 no mercado estrangeiro, com redução do salário nesse país do nível B para o nível O;

  • aumento da produção mundial traduzida pela área tracejada [OAB], em resultado da diminuição da produção doméstica representada pela área abaixo do troço (OA) – não esquecer que a produção é o integral da produtividade marginal –, mais que compensada pelo aumento de produção no mercado estrangeiro, traduzida pela área abaixo do troço (OB)

É este resultado que leva à afirmação de que o mundo em conjunto fica melhor, embora se reconheça que, mesmo nos termos deste raciocínio ortodoxo, há perdedores que naturalmente terão tendência para se opor a esta migração, e ganhadores que a estimularão.
Os ganhadores serão os trabalhadores domésticos, quer os que emigraram quer os que ficaram, pois todos passaram a auferir maior salário; serão igualmente, em princípio, os produtores do país estrangeiro, pois passaram a pagar menores salários; e finalmente, a generalidade dos consumidores (admitindo um mercado integrado do produto), já que dispõem de maior quantidade a menor preço.
Os perdedores serão os trabalhadores do país estrangeiro, que vêem os seus salários descer, e os produtores locais que produzem menos (e receberão menos se o mercado estiver integrado, porque baixa o preço do produto) e pagam mais pelos salários.
É óbvio que há aqui hipóteses muito fortes e, mesmo neste contexto, alguns reparos se impõem. Admitimos que se trata de um produto homogéneo que exige apenas um tipo de trabalhadores, todos pagos à mesma taxa salarial. Atente-se, por isso mesmo, em que não é claro que os produtores estrangeiros venham a ganhar porque, embora vendam mais e paguem menos salário, o preço do produto cairá por aumento global de oferta, dependendo o efeito global da elasticidade da procura.
Mas as maiores críticas nascem da verosimilhança do modelo. Ele pressupõe, com efeito, que o mercado do trabalho é completamente flexível, que não há desemprego (quem emigra tinha emprego e vai é procurar ganhar mais) porque o salário pode baixar a níveis que não se sabe se são minimamente consistentes com a subsistência, até se atingir o equilíbrio; que a emigração se faz sem custos, pois o diferencial de salário é suficiente para justificar a deslocação; que os dois países têm dimensões suficientemente próximas para que os efeitos sejam sensíveis em ambos; e ainda, que a emigração atinje um valor significativo, para que os efeitos sobre o ajustamento dos salários possam ser visíveis. Isto tudo, é claro, na presunção que não há qualquer obstrução à mobilidade por parte dos perdedores e que todos os outros factores de produção não sofrem perturbações significativas com influências nos custos, hipótese obviamente improvável. Se pensarmos na capacidade física de produção, o mais provável é ficar um dispendioso excesso de capacidade no mercado doméstico e uma sobre-utilização (eventualmente mesmo um necessário investimento) no mercado externo, com os consequentes sobre-custos. Só resultará vantagem acrescida na emigração se houver possibilidade de deslocar também o capital ou existir uma situação de partida de sobre-utilização de capacidade no mercado doméstico e excesso no mercado estrangeiro.
Finalmente, é curial não esquecer que todo este raciocínio se baseia no tratamento do factor trabalho com uma lógica radicalmente individualista, sem a consideração de quaisquer tipos de relações sociais e familiares, para além de não se especificar a diferença entre o trabalhador – pessoa que toma as suas decisões e com elas sofre ou ganha – e o produto – camisa (por exemplo) que é pertença de outrem e não “sabe” nada de custos ou ganhos, nem de laços com outrem, limitando-se a proporcionar ou a diminuir condições de bem-estar.
Para além destas diferenças, há uma outra essencial que é mister não iludir: as pessoas querem mesmo mudar de lugar ou são forçadas a isso? É que a camisa, de certeza, não põe qualquer obstáculo à mudança! Por outro lado, há uma componente familiar e social na decisão de mudança completamente omissa no modelo, que, assim, só serve para pessoas completamente egoístas ou isoladas, perfilando-se com uma lógica intrínseca de destruição das relações familiares ou, no mínimo, de absoluta neutralidade face a elas.
Como é evidente, estes problemas não se põem com a mobilidade do outro factor primário relevante –
o capital –, também ele sendo afectado de modo a obter-se a maior rendibilidade possível, se não houver, como admitimos, quaisquer restrições ao seu movimento, segundo critérios do mesmo tipo dos desenvolvidos para o outro factor ou para os produtos. Efectivamente, não há significativas dificuldades no seu movimento e as modernas tecnologias de informação permitem uma mobilidade quase instantânea entre dois quaisquer pontos do mundo. E, no entanto, não deixa de existir algum julgamento negativo sobre a “expatriação” de capitais pertencentes a residentes nacionais, ao contrário do que acontece com as exportações de produtos, o que parece indiciar uma noção de posse nacional implícita nos factores de produção que em geral não se manifesta relativamente aos produtos.
Contudo, um aspecto específico do capital que permite uma alteração da fronteira de possibilidades de produção de um modo bem diferente da provocada por outros tipos de factores: é a possibilidade de ele ser emprestado, provocando uma fronteira intertemporal de produção. Nesta fronteira, como muito bem descrevem Krugman e Obstfeld, o consumo futuro é relacionado com o consumo presente , sendo que mais de um implica menos do outro, em perfeita correspondência com as fronteiras típicas já desenhadas em que mais vestuário é menos pão e vice-versa.
Do mesmo modo que nas fronteiras desenhadas a partir de bens há enviesamentos no sentido do pão ou do vestuário, também neste contexto dois países podem ter enviesamentos relativamente a consumos presentes ou consumos futuros. Assim, se Tecnolândia for enviesada em favor do consumo futuro e Artelândia em favor do consumo presente , é de esperar que o preço relativo do consumo futuro seja mais elevado em Artelândia que em Tecnolândia, sucedendo o contrário com o consumo presente. Se for possível a troca dos dois tipos de consumo entre os dois países, a extensão do princípio das vantagens comparativas indica-nos que ambos ganharão se Artelândia “exportar” consumo presente e Tecnolândia “exportar” consumo futuro.
Como se opera esta troca? Naturalmente, através de empréstimos que serão reembolsados no futuro. Não se trata, pois, de um movimento do factor capital para outra região para aí ser usado em definitivo, como se de uma transferência se tratasse, mas apenas de uma utilização temporária e transitória que se espera que resulte em ganho para ambos, o que exigirá um pagamento (a taxa de juro ) equilibrado.

 

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
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