2.4

Interacções

 

Gerir processos cognitivos de modo eficiente não implica necessariamente uma complexidade de metodologias e conhecimentos da psicologia social e do comportamento. Embora haja outros aspectos importantes, o essencial é a endogeneização de um ambiente facilitador das interacções entre pessoas (entre quadros da empresa e entre estes e o exterior). Como com qualquer outro tipo de processos, a pedra basilar do funcionamento eficaz do conjunto é a garantia de uma continuidade perfeita entre cada par de elementos do sistema.
 

A regra básica para a gestão eficiente de parcerias é a adaptação perfeita entre as expectativas e requisitos de uns e as entregas e desempenho de outros.


 

É evidente que atingir este objectivo plenamente conduziria a uma situação ideal: a empresa cumpre integralmente as expectativas dos investidores e dos clientes, os fornecedores cumprem cabalmente as necessidades da empresa, os consultores técnicos cumprem totalmente as expectativas da empresa quanto à resolução de problemas, etc. No entanto, não é assim tão fácil atingir esta plenitude: alguns elementos podem não poder cumprir expectativas irrazoáveis, mas não as conseguir alterar (por exemplo, investidores só interessados em rentabilidades acima dos 25% ao ano dificilmente encontrariam gestores de empresas capazes de cumprir essas expectativas...).

O processo ideal seria o seguinte:

 

·         saber bem quais as expectativas do elemento requerente;

·         analisar criteriosamente a capacidade de as cumprir;

·         “negociar”, se necessário, a alteração das expectativas até conseguir um encaixe perfeito.

 

Este princípio aplica-se quer a ligações internas quer externas. Evidentemente, torna-se mais fácil pô-lo em prática se as expectativas forem quantificáveis em requisitos objectivos (podem-se aplicar normas de qualidade, por exemplo, a produtos e a matérias-primas).

Assim, em qualquer ligação, deveríamos procurar que:

 

·         quem solicita o faça claramente, traçando objectivos claros, inequívocos e potencialmente realizáveis;

·         quem oferece não prometa o que não pode cumprir;

·         nenhuma das partes tenha dúvidas de que a outra fez conforme acima indicado.

 

Sabemos já que existe um elemento que não irá cumprir estas regras: o mercado final raramente solicita com clareza o que quer. Aliás, tratando-se do consumidor final, provavelmente nem sequer terá expectativas e requisitos bem definidos, ou verifica-se mesmo incompatibilidade entre ambos. Frequentemente, as expectativas também não são realizáveis. Os mercados têm de ser trabalhados de formas mais complexas.

 

Relações internas: comparação de modelos organizacionais

Dentro do ambiente da empresa, a probabilidade de estabelecer interacções eficazes (adequação entre expectativas e entregas) é tanto maior quanto mais aberta, completa e descomplexada for a comunicação.


 

Modelo organizacional hierarquizado

O modelo organizacional típico das empresas portuguesas é muito hierarquizado e a comunicação entre diferentes níveis é frequentemente fraca (esquematizado na figura 2.5).


 Fig. 2.5
Estrutura organizativa fortemente hierarquizada.


 

Este modelo pode ser importante em ocasiões cruciais na vida da empresa: por exemplo, em períodos financeiramente críticos, em que toda a capacidade de decisão e organização do trabalho tem de estar fortemente centralizada por qualquer motivo. No entanto, conduz muitas vezes a erros típicos nos processos cognitivos que são fulcrais para a gestão da inovação. Daqui resulta que uma empresa fortemente hierarquizada é em média menos inovadora, uma vez que:

 

·         ignora informação relevante;

·         inibe a geração de informação relevante;

·         provoca falta de motivação e operacionalidade nas equipas;

·         cria rigidez e convencionalidade das soluções;

·         sustenta a preocupação em “servir níveis superiores” em vez de “servir os interesses globais da empresa”.

 

A hierarquia demasiado vincada auxilia os níveis superiores a ignorarem informação relevante vinda dos níveis inferiores, e os níveis inferiores a restringirem a informação destinada aos superiores, por receios vários ou falta de motivação. A informação gerada nos níveis mais inferiores raramente chega aos mais superiores sem ser filtrada em vários pontos, perdendo-se em acuidade e com frequência na sua totalidade (o inverso também se aplica). A tendência normal é cada nível fechar-se em si mesmo e gerir relações de conflito mais ou menos aberto com outros. O caso mais típico, inesgotável fonte de anedotas internacionais, é o relacionamento entre quadros tecnológico-fabris e quadros comerciais-marketing. Outro caso, também com destaque no anedotário internacional, é o do divórcio entre níveis de gestão (sobretudo os intermédios) e os quadros fabris.

Em termos de gestão da inovação, outro erro muito frequente é atribuir sempre a chefia de equipas de trabalho ao elemento hierarquicamente superior do grupo. Em primeiro lugar, esta opção tende a sobrecarregar os quadros mais seniores com demasiados projectos e responsabilidades, de que resulta uma atenção dividida ou quase nula em projectos que não sirvam directamente os interesses dos quadros de topo da empresa. Por outro lado, é desmotivadora para os quadros técnicos que desenvolvem o trabalho essencial, mas que nunca o sentem como crédito seu fora dos olhos da equipa. Por outras palavras, este sistema desperdiça a mais-valia que a motivação e consequente empenhamento podem dar à função de chefia do projecto – quem chefia está muitas vezes pouco motivado, quem poderia estar muito motivado não chefia. O resultado evidente é a perpetuação de soluções convencionais, a falta de flexibilidade e a diminuição da capacidade de resposta.

Um erro menos perceptível resulta de o benefício profissional (quer financeiro quer de estatuto) se traduzir exclusivamente em ascenção nos degraus da hierarquia. Todas as pessoas procuram apreender as regras dos jogos em que estão envolvidas e rapidamente se apercebem da melhor forma de os jogar. Se o objectivo da actividade de cada um é subir hierarquicamente e se essa subida depende exclusivamente dos níveis superiores, então toda a acção é canalizada para satisfazer e “impressionar” esses níveis superiores. Os projectos que beneficiem a empresa mas não sejam prioritários para este objectivo são portanto facilmente esquecidos. Por outro lado, a “vontade de agradar” inibe a transmissão de informação que pode ser relevante por receio das consequências, leva a aceitar objectivos impossíveis de cumprir (originando problemas a prazo, então resolvidos “deitando culpas” para outro lado) e privilegia “criticar” em vez de “fazer”. Quem critica vê-se como uma pessoa sensata, conhecedora, que identifica facilmente as dificuldades, que é ponderada e objectiva; quem faz arrisca-se a errar e a falhar, expondo-se a críticas (mesmo quando conseguiu fazer é sempre possível ser alvo de críticas sustentando que podia ter sido mais bem feito).

Adicionalmente, esta situação gera também inúmeros conflitos entre níveis semelhantes, na “conquista” de uma posição de maior destaque dentro da hierarquia para a sua função (novamente, o exemplo entre as funções produtivas e comerciais é típico), ou na competição para ocupar, a seu tempo, um nível superior (“corrida à promoção”). Há dois modos de atingir estes objectivos: fazer melhor que o adversário ou minar o trabalho daquele. Normalmente, as partes em conflito prosseguem ambos, de que resultam autênticos “tiros no pé” em termos da globalidade da empresa (como uma pessoa com uma arma em cada mão, em que a esquerda dispara sobre o pé direito e a direita sobre o pé esquerdo).

 

 

Modelo organizacional descentralizado


No outro extremo, a moderna teoria de gestão de empresas (ver, por exemplo, Leigh e Maynard, 1997) propõe-nos uma estrutura sem níveis hierárquicos, constituída por diversas funções que são cumpridas em interacção com todas as outras com as quais se relacionam (esquematizada na figura 2.6). A estrutura é multi-dimensional: se por um lado podemos agrupar quadros com funções semelhantes em divisões ou departamentos, por outro lado podemos também agrupar quadros de diversos departamentos para execução de um determinado trabalho/função. Há uma certa hierarquização dentro de cada departamento, dirigido pelo elemento mais sénior, cujas funções principais são garantir a capacidade operacional desse departamento. Paralelamente, os diversos elementos participam em diferentes equipas de trabalho, consoante a necessidade. Em cada equipa estabelece-se uma hierarquia funcional, isto é, para executar determinado trabalho ou função, a equipa é liderada pela pessoa que o grupo entende mais adequada, que não será necessariamente a mais sénior ou a de mais alta posição hierárquica (vencimento) dentro da empresa. O próprio quadro executivo de topo (director, administrador,...) poderá integrar uma equipa que não chefia, sendo a sua função cumprir determinada tarefa, de acordo com os requisitos do trabalho, cuja gestão está a cargo de outra pessoa.

 Fig. 2.6 Estrutura organizativa descentralizada (representando apenas algumas equipas, hipotéticas).


 

 

É evidente que este tipo de organização resulta numa maior 

descentralização dos processos decisionais e é mais delicada de gerir. Exige um grande nível de confiança entre os quadros da empresa e uma responsabilização e empenhamento de todos os elementos. Por outro lado, não se pode compadecer com elementos que não trabalhem bem em equipa, tenham falta de motivação ou de sentido de responsabilidade, ou seja, é uma organização mais exigente em termos da qualidade dos recursos humanos e das relações entre si.

Na prática, é mais frequente encontrar este modelo em empresas relativamente novas, de conhecimento intensivo (knowledge intensive), e mais nos Estados Unidos que na Europa, onde a cultura é mais dada a formalismos.

É evidente que este entrosamento entre os quadros facilita a abundância de informação através da empresa, a motivação dos diferentes elementos e a flexibilidade de resposta. Também minimiza a potencialidade de conflitos entre funções ou entre elementos em funções semelhantes, dado que muitas pessoas têm de responder a diferentes solicitações vindas de variados níveis e não apenas ao seu quadro superior imediato. A implementação de sistemas de progressão profissional (e remuneratória) baseados no cumprimento satisfatório destas várias solicitações é um elemento importante para reforçar este efeito positivo. Assim, é habitual que neste tipo de organização a avaliação da prestação profissional de um quadro seja feita pelas pessoas que trabalharam com ele (de níveis superiores, inferiores ou semelhantes), em vez de exclusivamente pelos superiores hierárquicos. Se a progressão depender da opinião daqueles com quem trabalhamos indiferenciadamente e não só da opinião do(s) superior(es), é necessário ser eficiente na prestação de trabalho para com todos e não compensa concentrar os esforços em “agradar” a A ou B em detrimento de C ou D.

No entanto, é evidente que este modelo torna mais difícil a mobilização rápida de toda a empresa num determinado sentido em eventuais períodos de crise. Também pode tornar mais difícil a identificação de elementos fracos.

Actualmente observa-se, particularmente em grandes empresas, o desenvolvimento de modelos mais ou menos mistos, com uma certa tendência para um sistema descentralizado e encadeado nos níveis intermédios e mais hierarquizado nos níveis superiores e inferiores.

Em qualquer caso, a importância dada à clareza da comunicação e à abundância de informação é cada vez mais marcada. As empresas procuram “despenalizar” o surgimento de ideias e sugestões e desincentivar a tendência para a crítica gratuita.

 

Relações com o exterior

 

A figura 2.1 mostra que existem muitas ligações importantes com o exterior da empresa. Já foi afirmado repetidamente que estas ligações se vêm tornando fundamentais para o sucesso empresarial, mas em particular para uma gestão eficaz da inovação.

Em primeiro lugar, a inovação é virada para o mercado, o que significa que a relação entre a empresa e o mercado é uma pedra basilar dos sistemas de inovação. 

Para executar os seus trabalhos de inovação, várias outras ligações são importantes: o sistema científico-tecnológico pode ser possuidor de novas soluções, eficazes e rentáveis; o seu conhecimento, adaptação e implementação podem necessitar de consultadoria externa; a sua materialização pode implicar financiamentos externos, etc.

 

Há duas ligações sobre as quais vale a pena reflectir em particular: com empresas concorrentes e com empresas parceiras.

As empresas concorrentes delimitam fortemente o ambiente do mercado: exercem pressão no preço, na imagem e na necessidade de inovação da nossa empresa através da sua própria actividade de inovação. As ideias da concorrência são importantes pontos de referência do nosso próprio sistema de inovação. Um conceito de crescente importância é o denominado benchmarking. Segundo este conceito, procuramos e analisamos as melhores práticas (os casos de maior sucesso) que utilizamos depois como modelos. Este conceito é muito mais abrangente que o universo das empresas concorrentes: procuramos o benchmarking mesmo em empresas de sectores diferentes, mas que desenvolveram soluções organizativas, tecnológicas ou estratégicas que pensamos poderem ser aplicáveis ao nosso caso. (Este assunto é tratado em pormenor no manual “Inovação e Qualidade” desta série.)

 

O conceito de parceria empresarial tem duas vertentes: horizontal e vertical. Designamos por parcerias horizontais as existentes entre empresas com um tipo de actividade semelhante que se associam para determinado fim, como por exemplo:

 

·         aumentar a capacidade produtiva global, de modo a ganhar contratos de grande dimensão, capacidade negocial com compradores, poder de lobbying, ou a facilitar a resolução de problemas comuns;

·         diversificar o portfolio de produtos, com base no princípio de que cada produto é mais valioso como parte de um conjunto que não poderia ser tão diversificado se feito por uma só empresa. Deste modo, cada elemento da parceria pode especializar-se em determinado tipo de produtos e diminuir a sua diversificação individual.

 

Estes dois objectivos são típicos de empresas de pequena-média dimensão que procuram bater-se com as vantagens de escala das grandes empresas. No entanto, os mercados mundiais têm mostrado que esta abordagem é actualmente muito popular mesmo entre empresas de grande dimensão, como resultado de estratégias de internacionalização (ver os manuais Inovação e Desenvolvimento Internacional da Empresa e Marketing Internacional desta série). A constituição de parcerias deste tipo transforma empresas concorrentes em parceiras, requerendo por isso um elevado nível de confiança mútua para poder ser utilizado na sua plenitude. Frequentemente, este tipo de associações é um primeiro passo na direcção da fusão.

As parcerias verticais envolvem a criação de uma fileira, que pode ir desde a produção primária até à distribuição. Em certos mercados complexos, como o alimentar, verifica-se uma tendência na Europa para passar de uma situação de competição entre empresas para uma situação de competição entre cadeias. Recomenda-se a leitura do estudo sobre este assunto da FIPA, Federação das Indústrias Portuguesas Alimentares (1998).

Este esquema pode ser vantajoso para pequenas e médias empresas que participem em parcerias orientadas por cadeias de distribuição: em troca de produzir exclusivamente de acordo com as especificações da distribuição, as empresas vêem diminuídos os seus custos de comercialização. Um problema fundamental a resolver na operacionalidade destas parcerias é a distribuição do valor acrescentado ao longo da cadeia: deve ser entendida como lógica e atractiva por todos os elementos. Portanto, este não é o caso dos produtos de marca-branca ou marca-distribuidor das grandes cadeias de distribuição, uma vez que o seu valor é controlado pelas estratégias comerciais dessas empresas, sendo o valor acrescentado distribuído a montante reduzido a expressões mínimas. Para se poder distribuir valor, é necessário que este exista, pelo que é evidentemente mais apropriado conceptualizar parcerias para a obtenção de produtos inovadores, de maior valor acrescentado, que competem no mercado pela sua conveniência, qualidade e facilidade de utilização e não pelo preço. Estes produtos terão de interessar as empresas de distribuição pela sua capacidade de atrair consumidores às suas lojas, em detrimento de lojas concorrentes que deles não disponham, ou que não ofereçam ao consumidor as mesmas garantias de qualidade. Um caso particular, que se está a revelar importante na área das agro-indústrias e produtos biológicos na Europa em geral, é o da garantia de origem das matérias-primas e das suas formas de crescimento (alimentação dos animais, utilização de engenharia genética, de hormonas, etc.). No entanto, o desenvolvimento de cadeias cujo objectivo é minimizar os custos (e portanto, eventualmente, o preço final no consumidor) é também um assunto de grande actualidade.

Para além de permitir rentabilizar a inovação, as parcerias verticais são em si mesmas uma importante área de inovação. O desenvolvimento de uma logística integrada, com partilha interactiva de informação (utilizando, por exemplo, sistemas de permuta electrónica de dados – EDI, do inglês electronic data interchange), permite operacionalizar a cadeia em condições de máxima eficiência, minimizando custos de armazenamento e transporte e tempo de resposta a novas solicitações do consumidor. Na generalidade dos países europeus foram criadas estruturas e/ou programas de apoio ao desenvolvimento deste tipo de parcerias, por vezes sob a égide do conceito de ECR (do inglês efficient consumer response – resposta eficiente ao consumidor) com base no qual funcionam comissões nacionais. No entanto, em Portugal não foram ainda dados passos concretos nesse sentido, sendo as parcerias verticais resultado de acções individuais e carecendo ainda de um enquadramento global que facilite a sua maior divulgação.

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
Edição e Produção Editorial: Principia.    Execução Técnica: Cast, Lda.