1.2
QUALIDADE

Se, como vimos, o conceito de Inovação é passível de diversas leituras, tendo vindo gradualmente a alargar-se em termos de amplitude e campo de aplicação, o mesmo se pode afirmar relativamente à Qualidade. Trata-se de um conceito que remonta aos tempos mais antigos, como o comprovam, por exemplo, os esquemas de planeamento e inspecção empregues na construção das pirâmides no Egipto. Contudo, e cingindo-nos agora aos tempos mais recentes, é de referir que a tónica da Qualidade no início do século XX se situou na inspecção do produto acabado, evitando-se, com isso, a entrega de não conformidades ao cliente. Visa-se assim, acima de tudo, produzir o mesmo, sempre e cada vez mais o mesmo - numa atitude de certo modo antagónica ao próprio espírito de Inovação - para um ambiente de massificação da produção, e que encontra no modelo Ford T um dos seus expoentes máximos.

 

Três motoristas encontram-se com S. Pedro às portas do Céu, que lhes pergunta qual o tipo de carro que possuíam em vida.
"Um Packard" respondeu o primeiro.
"Tiveste obviamente uma vida muito fácil," comentou S. Pedro. "Vais directo lá para baixo. E tu?" perguntou, dirigindo-se ao segundo condutor.
"Eu tive um Cadillac" foi a resposta orgulhosa.
"Luxúria e decadência!" gritou S. Pedro. "Também tu vais lá para baixo."
Finalmente, dirigiu-se ao terceiro elemento que, tremendo que nem varas verdes, lhe respondeu:
"O meu carro era um Ford T".
"Tu entras para o Céu, meu filho, pois já sofreste o Inferno na Terra."
 
Henry Ford fundou a Ford Motor Company em 1903, lançando em 1908 no mercado o Modelo T, que viria a ser o primeiro automóvel fabricado em grande escala no mundo. Numa época em que o preço médio de um automóvel rondava os 2500 dólares, o Ford T mais barato custava apenas 835 dólares. O segredo de Ford residia em métodos de produção mais eficazes, que permitiam que a montagem do automóvel demorasse apenas algumas horas. Após uma visita aos matadouros de Chicago, onde as carcaças se deslocavam através de um sistema de correntes e o operário se mantinha fixo no seu posto de trabalho, Ford introduziu, em 1913, o sistema da linha de montagem. No final de 1914, o sistema já era aplicado ao fabrico integral do veículo, permitindo alcançar economias consideráveis em tempo e trabalho. À semelhança das carcaças no matadouro, o chassis movia-se, passando por cada um dos postos de trabalho onde eram incorporadas peças específicas. Cada operário executava uma só tarefa e o ritmo era marcado pela velocidade de andamento da própria linha.
A especialização e decomposição do trabalho em tarefas elementares foi um dos trunfos de Ford, que viu as suas fábricas produzirem 15 milhões de carros Modelo T. Em 1927, após a saída das linhas da viatura 15007033, a produção era encerrada, e o Ford T conquistava o seu lugar na história da indústria automóvel como o carro que mudou o mundo, democratizando a sua utilização. Esta filosofia industrial foi acompanhada de uma reduzida diversidade de opções - ficou célebre a afirmação proferida por Henry Ford de que "o cliente pode escolher um Ford T da cor que quiser, desde que seja preto!".

Fonte: "Great Cars: Ford Model T", Australian Classic Car,
http://www.ccar.com.au/aus/jan97-modelt.html

 

Por volta dos anos 30, começa-se a concluir que situar a Qualidade em torno da inspecção do produto acabado se estava a tornar manifestamente insuficiente. Inicia-se assim uma segunda fase de evolução da Qualidade (figura 1.1), em que a inspecção é complementada por uma atitude de natureza mais preventiva, baseada em metodologias de controlo estatístico.
Apesar de antecipar a resolução de problemas, o controlo visava, em primeira análise, corrigir desvios face a um determinado referencial de operação sem, contudo, questionar tal referencial. Ora, para fazer face a um mundo e mercados cada vez mais dinâmicos e em constante evolução, começou a ficar claro que era preciso ir mais longe, questionando e revendo permanentemente os padrões de desempenho vigentes. Desta necessidade emerge a importância da ideia de melhoria contínua, que vem complementar as actividades de inspecção e de controlo.
Ela encontra-se presente na garantia da qualidade, centrada na implementação de um sistema capaz de assegurar que o fabrico e a entrega de produtos vão de encontro às especificações acordadas com os clientes. Esta noção encontra-se também presente, e de forma ainda mais acentuada, numa postura de Qualidade Total (no sentido em que a Qualidade diz respeito a tudo e a todos, e não somente a um qualquer departamento ou aos processos de fabrico).

FIG. 1.1 Evolução da Qualidade no Século XX

(As datas apresentadas são meramente indicativas, uma vez que a transição entre fases acontece de forma gradual ao longo do tempo, e de modo assíncrono em diferentes partes do globo ou sectores de actividade).

Em Portugal, ainda que com algum atraso face a outros países, tem-se assistido igualmente a um progresso notável em termos de cultura e prática da Qualidade, sendo de assinalar alguns dos marcos históricos mais relevantes.

 

 
1929 - Criação da CEP (Comissão Electrotécnica Portuguesa)
1948 - Criação da IGPAI (Inspecção Geral dos Produtos Agrícolas e Industriais)
1949 - Adesão à ISO (Organização Internacional de Normalização)
1952 - Criação do CN (Centro de Normalização)
1969 - Criação da APQ (Associação Portuguesa para a Qualidade)
1977 - Criação da DGQ (Direcção Geral da Qualidade)
1983 - Criação do SNGQ (Sistema Nacional de Gestão da Qualidade)
1986 - Criação do IPQ (Instituto Português da Qualidade)
1993 - Alteração do SNGQ para SPQ (Sistema Português da Qualidade)
1996 - Criação da APCER (Associação Portuguesa de Certificação)
1999 - Criação da CERTIF (Associação para a Certificação de Produtos)

Fonte: Guia Repertório da Garantia da Qualidade, pág. 8.

 

Uma abordagem clássica à Inovação situa esta numa grande proximidade da tecnologia, o mesmo sucedendo no que diz respeito à Qualidade relativamente à Satisfação do Cliente (na óptica do utilizador) ou à Conformidade com Especificações (na óptica da normalização), pilares fundamentais a que, por vezes, o senso comum ainda hoje limita o conceito de Qualidade.
Contudo, e por analogia com o que sucedeu em torno da Inovação, o significado de Qualidade foi-se alargando gradualmente, como vimos, acompanhando a evolução da sociedade e da própria disciplina. Actualmente, numa das suas possíveis definições [ISO (1994)], é considerada como

Próximo conceito

"o conjunto de propriedades e características de uma entidade que lhe conferem aptidão para satisfazer necessidades explícitas ou implícitas."

Assiste-se, portanto, a um progresso do conceito que, à semelhança do sucedido no campo da Inovação, deixa claramente de se resumir ao produto, para passar a incluir de forma decisiva pessoas, processos, e estruturas. Desta transformação e alargamento de significado nascem igualmente novas designações, como Excelência e Qualidade Total, apresentada por Feigenbaum (1956) nos seguintes termos:

"sistema organizacional que integra o desenvolvimento, a manutenção e a melhoria da qualidade efectuados por diferentes grupos internos e externos à empresa com o objectivo de garantir que o projecto, o fabrico, a comercialização e o serviço após-venda sejam efectuados ao menor custo, tendo no entanto como objectivo permanente a obtenção da total satisfação do cliente".

Face à dinâmica de mudança e aceleração que marca os tempos modernos, sentida de forma particularmente intensa no que concerne a mercados e concorrentes, uma segunda tónica dominante tem vindo a ganhar terreno no Universo da Qualidade. Diz respeito à permanente necessidade de melhoria no seio das organizações, que conduz ao progresso, renovação e mudança, através de uma adequada gestão de processos, recursos, estruturas e pessoas - ao invés das preocupações iniciais, de manutenção do status quo por via da inspecção.
Quanto à cadência desta melhoria, se, numa fase inicial, ela se baseava essencialmente no efeito cumulativo de inúmeras etapas incrementais (designadas na gíria por kaizen), considera-se hoje em dia que tais melhorias incrementais podem e devem ser complementadas através de grandes passos. Com esta evolução semântica, a Qualidade aproxima-se decisivamente da Inovação, da qual se torna uma aliada poderosa.
Vemos assim que, percorrendo trilhos distintos e com caminheiros diferenciados, Inovação e Qualidade emergem no final do século XX como conceitos vitais para a sobrevivência das organizações, face a um ambiente generalizado de grande competitividade, elevada mudança e enorme velocidade, onde só os mais ágeis, rápidos e criativos serão capazes de subsistir.
Assim, e ainda que em termos de estruturas organizacionais os actores da Inovação e da Qualidade sejam muitas vezes distintos, assiste-se actualmente a uma tendência, naturalmente reforçada no futuro, de aproximação entre ambos os universos, havendo sintomas claros de integração e benefício mútuo decorrentes da utilização de Qualidade na Inovação, e de Inovação na Qualidade, como veremos.

 

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
Edição e Produção Editorial: Princípia.    Execução Técnica: Cast, Lda.