3.1
ADAM SMITH E AS VANTAGENS ABSOLUTAS

Todas as contribuições relevantes de Adam Smith para o desenvolvimento da teoria económica apontam para o seu papel seminal na defesa dos méritos do comércio internacional. Desde a crítica aos mercantilistas que incentivavam as exportações, mas tentavam impedir as importações (esquecendo que, a nível de um sistema fechado, como é o mundo, sem extra-terrestres para comprar e não vender, a soma das exportações tem que igualar a das importações porque ambas são faces de uma mesma “moeda” – uma operação de compra/venda), até aos seus bem conhecidos lemas, laisser faire, laisser passer, passando pela proposta de especialização do trabalho, tudo indica, de facto, a sua intuição das vantagens de um comércio aberto.
Mas é sobretudo a lógica subjacente à especialização do trabalho que melhor prefigura essas vantagens, já que a sua proposta visava aumentar a produtividade do trabalho , ultrapassando a fase artesanal – aquela em que o artesão fazia todo o produto, intervindo em todas as fases do fabrico – e organizando antes a produção industrial, caracterizada por tarefas repetidas que permitiam o aumento da destreza através de uma rápida aprendizagem, com o consequente aumento de eficiência.
Por similitude, é possível olhar para o mundo como uma grande fábrica potencial (esta visão é, afinal, a da actual economia mundializada), em que cada país ou região, em lugar de fazer tudo, qual artesão, se concentre apenas na fabricação extensa de poucos bens de forma a obter as tais economias de aprendizagem e de quantidade. Concretizar-se-ia, então, uma divisão internacional do trabalho semelhante àquela que se estabelece no interior de uma fábrica, com as consequentes vantagens na produção, mas que pressupõe trocas ulteriores dos produtos, sem o que as necessidades ficariam insatisfeitas, uma vez que se abandonara a lógica de autarcia.
Se a intuição faz sentido, é no entanto necessário identificar um mecanismo que conduza a este resultado. Em particular, é mister descobrir como é que o comércio livre pode garantir uma adequada divisão internacional do trabalho, ou seja, como é que se definirá quem produzirá o quê e, também, qual deverá ser a correcta distribuição dos bens produzidos.
É da busca de respostas a estas questões que decorre a formulação de modelos económicos, o primeiro e mais simples dos quais está implícito na abordagem de Adam Smith e nos leva ao conceito de vantagem absoluta.
Simplificadamente, o modelo pode ser descrito a partir de um número significativo de hipóteses (não esquecer que cada hipótese é uma restrição ao alcance dos resultados e que, portanto, quanto maior o número de restrições, menor generalidade tem o resultado), algumas das quais irão caindo nos modelos subsequentes:

1ª hipótese
O mundo é constituído apenas por dois países, Tecnolândia (T) e Artelândia (A), e apenas são produzidos dois bens, pão (P) e vestuário (V). Além disso, os bens são homogéneos nos dois países e em qualquer deles há consumo de ambos.
Esta hipótese permite o estudo das trocas bilaterais por meio de contruções geométricas simples e, por outro lado, a homogeneidade garante que os consumidores não distinguem os produtos dos dois países a não ser pelos preços, se estes forem diferentes.

2ª hipótese
Em cada um dos países as dotações dos factores são fixas e as tecnologias disponíveis não mudam.
Esta hipótese permite desenhar a fronteira de possibilidades de produção (FPP) que ilustra as condições de oferta de cada um dos países.

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Fronteira de Possibilidades de Produção é a linha (superfície ou hiper-superfície, se se considerarem 3 ou mais bens) que indica as combinações das produções máximas dos dois bens susceptíveis de serem atingidas com as dotações de recursos e as tecnologias existentes.

Nas figuras 3.1 e 3.2 apresentam-se dois tipos diferentes de fronteiras de possibilidades de produção, sendo os pontos A, B, C e D exemplos de combinações possíveis, posto que C e D não respeitem a hipótese 1ª se forem considerados como alternativas de consumo.
Que distingue os dois tipos de fronteira?
Ambos evidenciam que não é possível aumentar a produção de vestuário sem ser à custa do sacrifício de algum pão e vice-versa.

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Custo de oportunidade é a designação desse sacrifício, isto é, a quantidade de um bem de que tem de se abdicar para produzir mais uma unidade de outro bem.

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Então, o que distingue as duas fronteiras é o valor do custo de oportunidade : na figura 3.1 o custo de oportunidade é variável e crescente, enquanto na figura 3.2 é constante. Por facilidade de exposição, e salvo indicação em contrário, daqui em diante utilizaremos a hipótese de custos de oportunidade constantes, conquanto seja, obviamente, mais restritiva.
Ela corresponde à situação em que os factores de produção são usados em proporções fixas idênticas em ambas as produções.

FIG. 3.1 FPP com custos de  oportunidade  constantes.

FIG. 3.2  FPP com custos de oportunidade crescentes.

3ª hipótese
Existe concorrência perfeita em ambas as indústrias e ambos os países e ausência de quaisquer efeitos externos (externalidades)  .
Esta hipótese implica que os preços de mercado reflectem rigorosamente os custos de oportunidade que, assim, poderão ser usados em sua substituição nos raciocínios relevantes.

 4ª hipótese
Os factores de produção apresentam mobilidade perfeita entre as duas indústrias de cada país.
Esta hipótese garante que os factores de produção, em particular o trabalho, se moverão livremente entre as duas indústrias, respondendo a quaisquer eventuais diferenças, nomeadamente salariais, estando assim assegurada a igualização de salários nas duas indústrias.

Este conjunto de hipóteses, associado a uma outra que visa descrever as características da procura, imprescindíveis para a definição do ponto de equilíbrio de produção e afectação de recursos de uma sociedade, permite-nos estabelecer o que se passa na ausência de liberdade de comércio, isto é, em autarcia.
Admitindo, então, que as preferências da sociedade podem ser representadas por um conjunto de curvas de indiferença  consistentes (problema de grande melindre mesmo em termos teóricos), podemos estabelecer um ponto de equilíbrio em autarcia para os dois países.
O problema que põe Adam Smith é saber se a ruptura com a autarcia e a total liberalização do comércio entre os dois países não melhorará a situação dos consumidores dos dois países.
A resposta a este problema reclama três hipóteses adicionais

5ª hipótese
Os factores de produção não têm qualquer mobilidade para fora das fronteiras do país onde estão localizados.
Isto significa que enquanto a sua mobilidade interna é total, a sua mobilidade externa é nula, garantindo a permanência das fronteiras de possibilidades de produção e o respeito do comércio internacional pelas dotações nacionais dos recursos. Esta é, afinal, a hipótese que define a Economia Internacional na sua abordagem inicial: troca de produtos, mas não troca de factores.

6ª hipótese
O Trabalho é o único factor de produção relevante em termos de custo
Esta é uma hipótese que, parecendo muito forte, flui com toda a naturalidade na perspectiva de Adam Smith. Como sabemos, a sua teoria do valor assenta fundamentalmente na defesa de que, num país em autarcia, o preço de um bem é determinado pela quantidade de tabalho que incorpora. Mesmo a dominância do conceito de produtividade do trabalho como medida de competitividade bebe muito nesta doutrina, posto que ela seja hoje de difícil verificação prática.

7ª hipótese
A produção apresenta rendimentos constantes de escala , isto é, uma tecnologia tal que uma variação nos factores de produção se reflecte proporcionalmente nos produtos.
Com esta hipótese assegura-se que, quando muda a quantidade de trabalho afectada a uma produção, o valor desta varia proporcionalmente a essa quantidade de trabalho.
Admitamos, então, que os inversos da produtividade do trabalho , definida esta pelo volume de produção por trabalhador utilizado, são as apresentadas no quadro 3.1.

Número de trabalhadores necessários para a produção de uma unidade de cada bem, em cada país.

A leitura do quadro revela de imediato uma vantagem absoluta da Tecnolândia na produção de Vestuário, já que usa menor quantidade de factor de produção (neste caso o trabalho) para obter a mesma quantidade de produto. E, dadas as hipóteses formuladas, o custo dessa quantidade de produção é também menor, revelando maior eficiência. A situação altera-se se considerarmos a produção do Pão, uma vez que aí a vantagem é da Artelândia.
Generalizando a vários produtos e países, podemos afirmar que:

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Vantagem absoluta de um país é a sua capacidade de produzir um bem ou serviço utilizando menores quantidades de factores de produção que qualquer outro país.

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Note-se, antes de mais, como estamos no puro campo da Economia Internacional clássica, em que os “agentes” económicos relevantes são os países, supostos homogéneos relativamente a uma dada produção.
Perante o quadro apresentado pelas vantagens absolutas, Adam Smith defende que não faz sentido cada país continuar a produzir os dois produtos, desde que os possam trocar entre si. Efectivamente, se a Tecnolândia deixar de produzir uma unidade de pão liberta quatro trabalhadores que vão produzir mais duas unidades de vestuário. Em contrapartida, se a Artelândia deixar de produzir uma unidade de vestuário liberta oito trabalhadores que vão produzir mais 8/3 unidades de pão. Fazendo o balanço desta reafectação do factor trabalho verificamos que, em conjunto, a produção de vestuário aumentou de uma unidade e a de pão de 5/3 unidades, isto é aumentou-se a produção global sem ter usado maior quantidade do recurso relevante, o que ratifica a solução de Adam Smith
:

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Em situação de comércio livre cada país deve concentrar-se na produção dos bens em que tem vantagens absolutas.

Estes resultados apenas mostram a potencialidade de melhoria da situação inicial, mas não garantem que ela se concretize. No entanto, o mecanismo de mercado e as hipótese formuladas garantem essa melhoria por acção racional dos consumidores.
De facto, um consumidor da Tecnolândia “paga” duas unidades de vestuário por uma unidade de pão fabricado no seu país, enquanto percebe que se comprar essa quantidade de pão na Artelândia apenas terá de despender uma unidade e meia de vestuário. Como os produtos dos dois países são idênticos por hipótese (e veja-se como aqui não há lugar à preferência pelo produto “nacional” que contrariaria o assumido princípio da racionalidade económica, abrindo-se assim as portas à mundialização), os consumidores da Tecnolândia tenderão a comprar pão à Artelândia, criando desemprego na indústria de pão do seu país. Em contrapartida, os consumidores da Artelândia tenderão a comprar vestuário à Tecnolândia, pois têm de dar 8/3 de unidades de pão para adquirir uma unidade de vestuário no seu país, enquanto só têm de entregar duas unidades de pão para alcançar uma unidade de vestuário da Tecnolândia, provocando desemprego na indústria de vestuário do seu país. Dada a mobilidade inter-industrial do factor trabalho dentro de cada país, os desempregados da indústria de pão na Tecnolândia serão utilizados pela indústria de vestuário, entretanto confrontada pelo aumento de procura, sucedendo o inverso na Artelândia – confirmando-se a existência de um mecanismo endógeno ao sistema de comércio livre para concretização do aproveitamento das vantagens absolutas.
Note-se, entretanto, que não está garantido que os aumentos de procura equilibrem as possibilidades de aumento da oferta nas condições assumidas, além de estes resultados terem subjacente a hipótese de custos de transporte irrelevantes entre os dois países, um indício claro da alienação do papel da geografia económica que salientámos no capítulo anterior. Se os custos de transporte fossem elevados teriam de ser adicionados aos custos de produção, comprometendo a viabilidade das trocas e, portanto, as especializações propostas.

 

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
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