3.2
DAVID  RICARDO E  O  MODELO
D
AS VANTAGENS 
COMPARATIVAS

Se a existência de vantagens absolutas aponta intuitivamente para o comércio livre entre países, a situação complica-se quando essas vantagens não existem num deles. Por exemplo, confrontando dois países de potencialidades tecnológicas muito díspares como os EUA e Moçambique, que vantagens mútuas podem resultar do comércio entre ambos, atendendo a que, em princípio, os EUA terão vantagens na produção de todos os bens e serviços comuns (não estão aqui em causa bens específicos ou exóticos, cuja troca não é possível por só existirem num dos países)?
A verdade é que essas vantagens existem. O mérito da sua revelação coube a
David Ricardo com o conceito de vantagem comparativa , que é, de algum modo, contra-intuitivo. P. Krugman e M. Obstfeld (1997) referem mesmo que Paul Samuelson considerou a vantagem comparativa como o melhor exemplo de um princípio económico inegavelmente verdadeiro e que não é óbvio para pessoas inteligentes. A nossa experiência docente vai no mesmo sentido, pois testes feitos a alunos revelam claramente que o conceito não é intuitivo.
E, no entanto, um exemplo simples evidencia a sua existência.
Admitamos que na Tecnolândia uma inovação tecnológica na produção do Pão passou a produtividade para meia unidade de pão por trabalhador, enquanto todas as outras produtividades se mantiveram constantes. Desaparece, com isso, a vantagem absoluta de Artelândia na produção de Pão e as razões daí decorrentes para o estabelecimento do comércio livre.
Contudo, se o consumidor da Tecnolândia puder manter livremente o acesso aos produtos da Artelândia, e reciprocamente, dar-se-á conta de que, no seu país, troca uma unidade de vestuário por uma unidade de pão, mas que em Artelândia uma unidade de vestuário vale 8/3 unidades de pão. Em sentido contrário, um detentor de pão de Artelândia, que tem que dar 8/3 unidades para adquirir uma unidade de vestuário no seu país, apercebe-se que na Tecnolândia essas 8/3 unidades de pão “comprariam” também 8/3 unidades de vestuário. Há portanto incentivo mútuo a que a Tecnolândia venda vestuário à Artelândia e que esta venda pão àquela, estimulando-se a especialização da Tecnolândia em vestuário e da Artelândia em pão, trocando entre si os produtos das suas especializações.
E porquê?
Porque, apesar de na Artelândia ser tudo absolutamente mais caro (no sentido de a unidade produzida de cada bem consumir maior quantidade do factor trabalho, que é, por hipótese, o factor relevante do custo), o vestuário é relativamente mais barato na Tecnolândia, o mesmo acontecendo ao pão em Artelândia. De facto, o vestuário é 4 vezes “mais caro” na Artelândia que na Tecnolândia, enquanto o pão é apenas 50% “mais caro”. Embora, como sabemos, ambos os produtos sejam absolutamente mais caros na Artelândia, o pão é o “mais barato” em termos relativos e é nele que o país tenderá a especializar-se.

Próximo conceito

Um país tem uma vantagem comparativa na produção de um bem ou de um serviço se o custo de oportunidade  dessa produção em termos de outros bens ou serviços for aí menor que nos outros países. Isto acontece para os bens ou serviços que tenham nesse país os preços relativos mais baixos antes de ocorrer qualquer troca.

Desta definição decorre a Lei da Vantagem Comparativa:

Próximo conceito

Os países devem especializar-se nos bens e serviços em que têm a maior vantagem absoluta  (se tiverem vantagens absolutas) ou naquele em que têm a menor desvantagem absoluta (se não tiverem qualquer vantagem absoluta). Consequentemente, o comércio entre dois países pode beneficiar ambos se cada país exportar os bens e serviços em que tem vantagens comparativas.

Este princípio está na base da reiterada afirmação de que o comércio internacional é um jogo de soma positiva , o que significa que esta repartição de actividades conduz a um aumento conjunto da produção, a que corresponde maior produtividade global.
O problema que os jogos de soma positiva levantam é o de como repartir esses ganhos, sendo certo que, por norma, não existe critério unívoco para realizar essa repartição de um modo que agrade a todos. A teoria do comércio internacional resolve o problema afirmando que todos ganham, o que é essencialmente verdade para os países envolvidos nesse comércio, mas ignora por um lado que pode haver “uns mais iguais que os outros”, por outro que, dentro de cada país, pode haver ganhadores e perdedores.
Isso é claríssimo, por exemplo, em P. Krugman e M. Obstfeld (1997, pág. 24) ao descreverem casos de trocas entre dois países que se revelam favoráveis a ambos, mas nas quais não se identifica qualquer ponto de equilíbrio que permita ver quem mais ganha.
E, no entanto, o próprio mecanismo subjacente às vantagens comparativas aponta para que, em geral, o país mais forte (aquele que tem as vantagens absolutas) se aproprie da maioria dos ganhos, o que mostra bem como este princípio, se é fonte da melhoria absoluta de cada país, também pode estar na base do agravamento das desigualdades entre países, uma vez que a apropriação assimétrica dos ganhos contribuirá decisivamente para o agravamento do fosso já existente.
A melhor maneira de ilustrar estes ganhos do comércio é através do deslocamento das fronteiras desenhadas nas figuras 3.1 e 3.2. Essa figuras representam, simultaneamente, fronteiras de possibilidades de produção e fronteiras de possibilidades de consumo, já que na situação inicial de autarcia só se pode consumir o que for produzido. O mérito do comércio internacional é exactamente permitir consumir algo que se não produz, rompendo a identidade entre fronteira de possibilidades  de produção e fronteira de possibilidades de consumo, alargando esta em relação àquela, sendo a diferença entre as duas a medida do ganho proporcionado pelo comércio.

Façamos então um exercício que ilustre as mudanças potenciais resultantes do estabelecimento de comércio entre a Tecnolândia e a Artelândia, nas condições em que estudámos as vantagens comparativas. Admitamos, ainda, que ambos os países têm a mesma quantidade de factor trabalho e que ela ascende a 1 milhão de activos em cada um.
Tendo em atenção as produtividades admitidas, que supomos constantes, é possível apresentar nas figuras 3.3 e 3.4 as fronteiras de possibilidades de produção de cada um dos países antes da existência de qualquer comércio.
Verifica-se que a Tecnolândia pode dispor, no máximo, de 500 000 unidades de Vestuário ou de igual número de unidades de Pão, enquanto a Artelândia pode usufruir, no máximo, de 125 000 unidades de Vestuário ou de 333 333 unidades de Pão.

FIG. 3.3  Fronteira de Possibilidades de Produção da Tecnolândia

FIG. 3.4  Fronteira de Possibilidades de Produção da Artelândia.

 O desenho dessas fronteiras e dos conjuntos de possibilidade de consumo que elas limitam é, por si mesmo, ilustrativo do maior poder da Tecnolândia.
Admitamos que se estabelece o comércio entre os dois países em conformidade com o princípio das vantagens comparativas que levará à troca de Vestuário fabricado na Tecnolândia por Pão produzido em Artelândia, e que a
taxa de troca  é de 2 unidades de Vestuário por 1 unidade de Pão, valor que fica entre a taxa de 1:1 na Tecnolândia e 8/3:1 na Artelândia, evidenciando ganhos mútuos, conquanto não iguais, dos produtores de Vestuário da Tecnolândia e dos de Pão da Artelândia.
Com esta taxa de troca  desenham-se, nas mesmas figuras, as novas possibilidades de consumo de ambos os países, permitindo visualizar os ganhos bem maiores da Tecnolândia. Poder-se-á argumentar que, com outra taxa de troca mais favorável aos produtores de Artelândia, não se obterá necessariamente este resultado. Mas poder-se-á, em geral, estabelecer uma taxa de troca que lhes seja mais favorável? A resposta é francamente negativa porque há condições de assimetria entre os países que deslocam as vantagens para a Tecnolândia. Efectivamente, é fácil verificar que, qualquer que seja a taxa de troca (desde que faça sentido, mesmo que mais desfavorável à Tecnolândia), este país pode adquirir todo o pão à Artelândia e ainda ficar com recursos para produzir mais pão ou mais vestuário ou uma combinação de ambos, situação inatingível para Artelândia.
No caso da taxa de troca  admitida, a Tecnolândia, além das 333 333 toneladas de pão adquiridas a Artelândia – que assim só ficava com vestuário (166 666 unidades) –, poderia ainda produzir internamente igual número de unidades de pão ou de vestuário. Além disso, ainda poderia “encontrar” uma “segunda Artelândia” com quem trocar nas mesmas condições, o que lhe permitiria alcançar 1 milhão de unidades de pão, enquanto a Artelândia esgotaria radicalmente todas as suas possibilidades de troca.
Estes dados são mais que suficientes para evidenciar a posição de força que a Tecnolândia tem relativamente à Artelândia na negociação da taxa de troca, o que indicia que o valor que se vier a estabelecer será naturalmente favorável ao mais forte. É certo que toda a discussão se tem concentrado quase exclusivamente nas condições de oferta dos dois países e muito pouco nas condições de procura (pecha muito comum na teoria económica). No entanto, são estas que revelam a apetência relativa dos consumidores pelos produtos e que, em conjunto com as condições de oferta, vão ter influência decisiva na fixação da taxa de troca. É esta a razão por que afirmamos que a taxa de troca é em geral (e não sempre) favorável ao país mais forte. De facto, pode acontecer uma enorme apetência dos consumidores do “país mais forte” pelo produto do “país mais fraco” e uma relativamente fraca apetência em sentido contrário. Nesse caso, as condições de procura tenderiam a tornar a taxa de troca mais favorável ao “país mais fraco”.
Todavia, esta é uma situação muito improvável, não só porque traduziria situações de partida pouco consistentes (em cada país os recursos estariam a ser afectados ineficientemente, isto é, sem a adequada atenção pelas preferências dos consumidores), como pela evidência de que as preferências dos consumidores têm muito a ver com o seu orçamento e este é, em princípio, bem mais folgado no “país mais forte”.
Por isso, é sem surpresa que se acolhe a conclusão de D. Landes (1998), com base nos registos históricos, de que os ganhos de comércio são desiguais, recomendando uma ponderação séria dos efeitos do comércio e não a sua aceitação sem discussão.
Ressalve-se, no entanto, que esta cautela não tem que ver com o mérito absoluto do comércio internacional, mas apenas com a legitimidade de uma desigual apropriação dos seus frutos. Estamos, contudo, de acordo com Krugman e Obstfeld quando se insurgem contra algumas posições que negam as vantagens do comércio internacional, que consideram mitos.

O primeiro desses mitos é o de que o comércio livre só é benéfico para países suficientemente fortes para aguentarem a concorrência externa.

A teoria das vantagens comparativas é, por si mesma, a negação deste mito e Krugman e Obstfeld mostram-no dando um exemplo que, curiosamente, envolve Portugal. Recordando que a vantagem competitiva de uma dada indústria depende não só da produtividade relativa face à indústria estrangeira com que se confronta, mas também do salário nacional relativamente ao do país estangeiro, mostram que se Portugal tem, por exemplo, menor produtividade que os EUA na produção de vestuário, se a desvantagem da produtividade ainda for maior nas outras indústrias, faz sentido, apesar de tudo, pagar salários mais baixos de modo a garantir uma vantagem competitiva na indústria do vestuário. Esta “solução” conduz-nos ao que consideram o segundo mito:

O comércio livre é injusto e prejudica outros países quando é baseado em baixos salários.

É evidente que este argumento decorre da solução apresentada para rebater o primeiro mito, já que esta impõe a “fabricação” de uma vantagem comparativa  à custa de baixos salários, legitimando, de certa forma, as queixas dos sindicatos que defendem o estabelecimento de medidas de protecção face a algumas importações. O argumento contraditório de Krugman e Obstfeld é de que a razão dos baixos salários não é o comércio mas sim a produtividade baixa do país, perguntando-se, em consequência, se há algum mal intrínseco em basear as exportações em baixos salários, caso seja essa a realidade de um país, mesmo reconhecendo que ela é desconfortável.
Tal pergunta leva-os ao que consideram o terceiro mito:

O comércio livre explora um país e coloca-o em pior situação se os seus trabalhadores receberem salários muito menores que os dos outros países. 

É o chamado
mito da exploração e configura a situção em que o conteúdo de trabalho das exportações é francamente superior ao das importações.
Sem negarem esta evidência, Krugman e Obstfeld perguntam-se se há melhor alternativa, pergunta que tem implícita a afirmação de que não está em causa se é ou não justo esse baixo salário, mas sim o facto de que sem o comércio ele seria pior ou mesmo inexistente.
Todo o argumentário exposto pretende mostrar que não há exploração absoluta – no sentido de que quem está mal poderá não ficar melhor pelo facto de não se estabelecer o comércio –, mas abre a porta à convicção de que existe pelo menos uma exploração relativa, expressa pelo facto de os frutos desse comércio serem gritantemente aproveitados de modo desigual pelos “mais fortes”.
 

A legitimidade desta interrogação decorre do exemplo de Krugman e Obstfeld quando defendem que a exploração através do comécio livre não passa de um mito.
Afirmam que o argumento é apenas emocional. Para o tentar demonstrar dão o exemplo de um colunista que teria posto em contraste os 2 milhões de dólares de salário do CEO da cadeia internacional de confecção The Gap com os 0,56 dólares por hora pagos na América Central a um trabalhador que fabrica os produtos dessa cadeia.
Afirmam ainda que o colunista estava zangado com a extrema pobreza dos trabalhadores da América Central, mas que não se apercebia que negar-lhes a oportunidade de exportar e de comerciar podia bem ser condená-los a uma pobreza ainda mais aguda.
Contudo, estes autores esquecem-se de fazer, eles próprios, outra pergunta relevante: Quanto ganharia o CEO (e os outros altos funcionários, bem como os trabalhadores da cadeia nos “países mais fortes”) se este comércio não existisse? Não teriam uma bem maior diferença salarial? E se assim fosse, como toda a lógica do princípio das vantagens comparativas aponta, não será exploração ganhar muito utilizando (note-se que não dizemos “à custa”) quem, como é assumido, não tem alternativa?

 

 
A discussão precedente não vem senão confirmar a legitimidade de questionar o modelo das vantagens comparativas relativamente aos seus efeitos de repartição de ganhos e consequente apetência para os países aceitarem de bom grado assumir o comércio livre e as alegadas vantagens daí decorrentes.

 

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
Edição e Produção Editorial: Principia.    Execução Técnica: Cast, Lda.