1.1
NOÇÃO DE MERCADO GEOGRÁFICO NA PERSPECTIVA EMPRESARIAL



O primeiro passo no sentido do domínio dos fundamentos de gestão de um projecto internacional é, com certeza, a identificação das características que diferenciam "internacional" de "doméstico", para procurar de seguida os instrumentos adicionais de gestão que permitem fazer a passagem do "projecto doméstico" para o "projecto internacional", se é que tais diferenças existem. Esta posição socrática de desconfiança face à existência de diferenças significativas que imponham uma mudança nas características da gestão pode parecer estranha para quem se dispôs a escrever um manual sobre o tema, na medida em que a putativa conclusão de não existirem tais diferenças determinaria, de imediato, a inviabilidade de escrita do manual.
Contudo, tal não poderia deixar de ser feito por inalienáveis razões de carácter metodológico, sendo óbvio que, quando se optou por escrever o manual, a resposta encontrada para esta dúvida permitia a concretização do mesmo.
O curioso é que a resposta é mais negativa que positiva, exactamente pelas razões que apontam para a necessidade da "gestão internacional". Como se evidencia no Capítulo 2 do manual Economia Internacional com o qual este ponto deve ser conjugado, agora mais numa visão empresarial em contraste com a visão nacional aí desenvolvida, não é mais possível, com excepções que são irrelevantes e até parciais, pensar em termos exclusivos de "mercado doméstico", impondo-se em permanência a visão do negócio numa perspectiva internacional.
Isto significa que a "gestão internacional" é a gestão relevante para a generalidade dos projectos, deixando de fazer sentido falar de "gestão doméstica". De facto, como se especifica no Capítulo 2 do manual Economia Internacional

o mercado geográfico relevante para qualquer empresa instalada no mercado português, isto é, o conjunto de actores do lado da procura e do lado da oferta com quem a empresa interage, deixou de se confinar às estritas fronteiras nacionais, quer a empresa queira, quer não,

em resultado da "internacionalização" da economia portuguesa, mesmo sem intervenção directa de estratégias activas de empresas portuguesas.
Assim, uma empresa que não estava habituada a defrontar a concorrência estrangeira no "seu" próprio mercado sofre um primeiro impacte de internacionalização, exactamente em consequência da internacionalização da economia do país em que está localizada. E mais! Começando por sofrê-la ao nível primário dos produtos importados, vê-se confrontada, pelo aprofundamento do processo português na União Europeia e mais geralmente na economia mundial, com uma inesperada concorrência em todos os mercados em que opera a montante e a jusante, isto é, não só nos mercados dos seus produtos, mas também no mercado de factores (mão-de-obra, matérias-primas, entre outros) e até no "mercado institucional", sofrendo a imposição de novas regras, também elas "importadas".
Esta internacionalização "passiva", ou "por contacto", não pode ser ignorada na formulação de estratégias das empresas, por pequenas que sejam. Neste sentido, grande parte das empresas portuguesas encontra-se num processo de internacionalização. É que, do ponto de vista geográfico, no mercado relevante de cada uma delas encontram-se produtos (se não mesmo empresas) estrangeiros em competição directa com os dela. Nesta perspectiva, só as muito pequenas empresas, em mercados de expressão regional muito reduzida e com características de quase-autarcia, parecem estar imunes a esta internacionalização por contacto, pelo menos em termos directos e estáticos. Em termos indirectos e dinâmicos, todavia, não cremos que essa situação seja durável porque, a todo o momento, pode aparecer um novo produto importado, já para não referir a eventualidade de um cliente habitual localizado na vizinhança ter descoberto um produto substituto através da Internet e feito a respectiva encomenda.
Não queremos afirmar com isto a impossibilidade de sucesso de empresas "locais", mas tão só alertar para o facto de decisões de gestão que não tenham em conta a potencial concorrência internacional serem "míopes" e perigosas. Não se infira daqui que todas estas concorrências potenciais se possam materializar, já que algumas das ameaças terão poucas hipóteses de concretização devido à existência de condições de localização ou da própria natureza do produto ou serviço que favorecem a empresa instalada. Todavia, e esse é um irrecusável acto de gestão, tal conclusão terá de ser retirada pelo gestor com base num diagnóstico consciente que incorpore todos os elementos significativos para a análise, designadamente a componente internacional.
Vale isto por dizer que a focalização na internacionalização "de dentro para fora", isto é, centrada nos movimentos de desenvolvimento estratégico de empresas localizadas em Portugal (alvo de estudo no capítulo seguinte), pode obnubilar este fenómeno inelutável de internacionalização passiva que, apresentando uma bem maior generalização, tem de ser incorporado na definição estratégica de quase todas as empresas, podendo mesmo estar na origem de internacionalizações pró-activas.
Tudo isto resulta, afinal, de a economia portuguesa se ter tornado um campo da concorrência internacional, quer em consequência de política própria (a integração na União Europeia, já precedida pela participação na EFTA), quer em resultado da crescente mundialização da economia causada por rupturas tecnológicas imparáveis (a revolução digital), potencializadas por mutações institucionais significativas de que a queda do "Muro de Berlim" é exemplo paradigmático.
Parafraseando o Poeta, as empresas portuguesas têm que 

deixar de estar postas em sossego,
dos seus anos gozando os doces frutos,
naquele engano de alma ledo e cego,
que a fortuna (já!) não deixa durar muito (nada mesmo!).

Em resumo, propomos, numa perspectiva muito alargada, que

a Internacionalização de uma empresa abranja todas as situações em que ela defronte, activa ou passivamente, concorrência de produtos (ou de empresas) provenientes (ou localizadas) fora do espaço português em qualquer dos mercados (produtos ou factores) em que está envolvida.

Segundo notícias da imprensa portuguesa, há poucos anos atrás uma empresa de cestos de vime localizada em Ferreira do Alentejo teve enorme sucesso junto de turistas estrangeiros que, no Algarve, adquiriam parte significativa da sua produção. Confrontada com a hipótese de se internacionalizar através de exportações, mostrou-se pouco aberta à sugestão, entendendo que era um risco desnecessário, na medida em que tinha um lucrativo "mercado" ao pé da porta que, implicitamente, considerava "cativo".
Só que, a certa altura, instalou-se no Algarve um importador de cestos vindos de países asiáticos que, com preços atraentes, fez uma feroz concorrência aos cestos alentejanos, com as devastadoras consequências daí decorrentes.
Esteve em jogo, afinal, uma má identificação do mercado relevante, situação muito típica em empresas portuguesas que, em lugar de anteciparem e se prepararem para essa concorrência, se fecham no "seu" (que o não é) mercado doméstico, pedindo depois a protecção do Estado contra esses "intrusos", claramente impossível no actual contexto internacional e, em geral (mas não necessariamente sempre, atentos todos os interesses em jogo), indesejável do ponto de vista social.

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
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