3.2

Diagnósticos e reengenharia

 

“A persistência é o trabalho duro que fazemos quando já estamos fartos do trabalho duro que acabámos de fazer”.
Newt Gingrich

 

Conceitos gerais

 

“Um mapa não é um território, é um pedaço de papel.”
Alfred Korzbyski

 

O termo “reengenharia” faz lembrar um outro tipo de exercício, em voga na década de 80, que procurava essencialmente reduzir a dimensão da empresa (sobretudo em recursos humanos) através de uma reorientação de objectivos e funções e de uma reestruturação organizativa. No fundo, estava em causa concentrar a actividade da empresa, eventualmente abandonando algumas áreas, de forma a diminuir custos. A pergunta fundamental a responder era: “como fazer com menos custos o que sabemos fazer melhor?”

A reengenharia de processos de que estamos a falar não visa o mesmo tipo de soluções. Admitimos que a empresa faz eficientemente aquilo que faz. A pergunta a responder é “como podemos fazer melhor aquilo que fazemos no sentido de melhorar as nossas posições no mercado?”. Logo à partida, devemos mesmo questionar se estamos a fazer o que devíamos, isto é, se os nossos produtos (bens ou serviços) estarão adequadamente direccionados ao mercado, actual ou futuro (exercício algo especulativo).

Este tipo de trabalho tem uma dimensão estratégica de base evidente: como resultado, talvez revolucionemos completamente o modo de operar da empresa. No entanto, não há uma correlação directa entre a reengenharia de processos e os custos – desta reengenharia tanto pode resultar uma diminuição dos custos como um aumento. A preocupação é aumentar a eficiência e a competitividade e poderá haver investimentos envolvidos.

Existem duas opções possíveis em relação a um BPR :

 

·         metodologia incremental;

·         metodologia radical.

 

A abordagem incremental assemelha-se a um trabalho geral de estratégia (neste caso, utiliza-se mais frequentemente o termo BPI em vez de BPR , embora noutras situações estes dois termos sejam empregues indistintamente – por esse motivo, neste livro também os utilizamos indistintamente para evitar complicações desnecessárias). Esta metodologia corresponde a uma sequência típica do seguinte género:

 

·         elaborar um diagnóstico que permita visualizar onde estamos;

·         definir um cenário de onde queremos estar a médio/longo prazo (ou onde achamos que teremos de estar para manter ou aumentar a competitividade, face à evolução dos mercados);

·         conceber um plano de acção que nos indique como podemos ir de um lado para o outro.

 

Numa abordagem radical, tentamos definir os processos da empresa a partir do zero, como se ela não existisse e tivéssemos de a construir de novo. Neste caso, só precisaríamos de um diagnóstico já depois de ter projectado de novo a empresa, para estabelecer o plano de implementação do novo “desenho”. Aliás, alguns especialistas partilham a opinião de que seria mesmo prejudicial elaborar o diagnóstico antes de o novo projecto estar definido, para minimizar a probabilidade de se seguir por caminhos mais convencionais só por estes serem mais comuns (Davenport, 1995).

Os processos de que estamos a falar não são apenas produtivo-tecnológicos, mas todos os conjuntos de tarefas logicamente relacionadas que são executadas para alcançar um determinado objectivo empresarial (alguns exemplos: desenvolvimento de um novo produto, requisição de materiais a um fornecedor, criação de um plano de marketing, negociação de um contrato de vendas). Frequentemente, os processos tecnológicos são os que acabam por sofrer menos alterações no decurso de um BPR .

 

“Um plano global de inovação pode ser desenhado a partir de um BPR   (Business Process Reengineering): análise e projecto dos fluxos de trabalho e processos dentro da empresa e entre esta e o exterior.”  
(Davenport e Short, 1990)

 

Para melhor compreender as vantagens e inconvenientes das duas metodologias, comecemos por analisar as técnicas envolvidas nas três grandes áreas de uma abordagem incremental: diagnóstico actual, visão para o futuro, plano de acção.

 

 

Diagnóstico

 

“Niguém viaja tão longe quanto aquele que não sabe para onde vai.”
Oliver Cromwell 

 

A Comissão Europeia (DG XIII ) promoveu o desenvolvimento de ferramentas para a gestão da inovação (IMT ) nas PME através do programa Innovation, tendo sido recolhidas e analisadas dezoito técnicas  de diferentes países (incluindo uma portuguesa, desenvolvida pela empresa de consultoria Challenge para o IAPMEI ). Este programa, cujos resultados foram compilados e publicados (European Commission, 1997), deveria providenciar uma visão geral daquilo que se faz na Europa em termos de gestão da inovação na sua componente de reengenharia de processos.

Curiosamente, a grande parte das técnicas compiladas abordam apenas uma vertente deste trabalho: o diagnóstico. Somente algumas utilizam o diagnóstico para definir estratégias e formas de as implementar. Também se verifica que só três entre dezoito envolvem um trabalho com todos os níveis da empresa. As restantes ficam-se pela administração, o que viola um dos princípios enunciados no ponto anterior (ser exaustivo nas fases de levantamento de questões) e uma das principais recomendações dos capítulos 1 e 2 (envolver todos os níveis da empresa).

Estas três técnicas de diagnóstico (TEKKES-MINT, finlandesa, Pera Profile e PROBE, britânicas) constituem bons exemplos de elaboração e execução de diagnósticos, que aliam ao cumprimento das orientações gerais dos livros e manuais sobre o assunto (e.g. Bellon e Whittington, 1996) uma componente prática adaptada ao ambiente das PME . Nenhuma das técnicas recolhidas sugere um  BPR radical.

O facto de as IMT do programa Innovation, direccionadas para as PME , se terem reduzido a uma abordagem incremental e na sua maioria limitada nos objectivos e no envolvimento dos quadros da própria empresa envolverá provavelmente duas causas:

 

·         uma tradição mais conservadora na Europa que nos  EUA e Japão;

·         as limitações das PME , já referidas no capítulo 1: o aumento dos custos e riscos trazidos pela inovação pode ser crítico para uma empresa pequena, eventualmente com limitações de recursos humanos. Daí que, em geral, seja de esperar que as PME   prefiram optar por abordagens incrementais para a sua reengenharia.

 

Os diagnósticos incidem sobre várias áreas da empresa e, desejavelmente, sobre as relações entre esta e o exterior. O quadro 3.1 contém uma sugestão sumária de áreas e questões que podem ser exploradas com um diagnóstico. Evidentemente, o âmbito do trabalho (mais abrangente, mais direccionado, com questões mais específicas ou mais gerais) deve ser definido previamente, tendo em atenção os objectivos do exercício. 

 


 

Quadro 3.1 Exemplo de um esquema geral de um diagnóstico abrangente.

 

Na escolha de uma metodologia para realizar o diagnóstico há duas principais questões a ponderar:

 

·         se a metodologia deve ser estruturada ou flexível;

·         se o trabalho deve focar a visão interna, contendo só as opiniões e interesses dos quadros da empresa (mesmo que realizado por um consultor externo) ou se um consultor encarregado do diagnóstico deve contribuir com a sua experiência e elaborar uma visão exterior.

 

Uma metodologia estruturada assenta normalmente num questionário. Este pode ter de meia centena a uma centena de questões, visando explorar as áreas seleccionadas. O questionário é preenchido por um conjunto representativo de quadros da empresa, isoladamente, em grupos (caso se pretenda obter logo à partida uma “visão de consenso” por cada grupo de funções, departamentos, etc.), ou em entrevistas feitas por um consultor às pessoas seleccionadas. Pode ser feita uma quantificação aplicando uma escala para cada questão (0 a 2, 1 a 20, conforme as preferências). Isso permitirá desenhar um gráfico que exibirá o perfil da empresa. Consultores experientes poderão utilizar este perfil para benchmarking, conhecendo o perfil comparável de “casos modelo”. 

Numa metodologia flexível, é vantajoso que o trabalho seja efectuado por um consultor experiente, que possa entrevistar as variadas pessoas deixando que a conversa decorra sem constrangimentos. O resultado é puramente qualitativo, cabendo ao executor do trabalho (“entrevistador”) extrair os elementos objectivos das variadas respostas (o que pode ser feito com ajuda de aplicações informáticas de análise qualitativa de dados – por exemplo, o QSR-NUD*IST da Scolari Inc. ). Neste caso é também gerado um perfil a partir da visão adquirida pelo “entrevistador” nas diferentes conversas. Ou seja, trata-se aqui de um consenso formado com base nas suas capacidades de análise e síntese, em vez de uma média matemática como no caso anterior. Obviamente, pode-se adoptar um sistema misto, com elementos flexíveis e elementos estruturados (metodologia semi-estruturada).

 

A segunda decisão sobre a metodologia a adoptar é se o diagnóstico deve traduzir exclusivamente a visão que a empresa tem de si própria, ou se deve ser compensado de alguma forma com uma visão exterior, em princípio neutra e mais objectiva.

Utilizar apenas a visão da empresa torna o trabalho mais simples. Tem a vantagem de resultar num diagnóstico que se relaciona directamente com o sentimento dos quadros e mais facilmente os motiva, mas pode conduzir a erros de forma logo no início do trabalho (uma certa auto-replicação - inbreeding).

Uma visão exterior obriga a dispor de um consultor experiente e corre o risco de desmotivar os quadros da empresa se for demasiado diferente das opiniões, expectativas e anseios destes. No entanto, tem maior probabilidade de ser mais adaptada às realidades externas em que a empresa está envolvida. Para reforçar essa valia, o diagnóstico pode ser complementado com entrevistas (estruturadas ou flexíveis) a pessoas representativas de fornecedores, clientes, investidores, etc., para elaboração de um perfil adicional sobre como a empresa é vista do exterior (obviamente, as áreas em análise em cada caso são mais reduzidas).

 

Visão para o futuro

 

“Vemos as coisas grandes no vale, mas pequenas no cume”.
George K. Chesteron

 

Definir uma visão para o futuro, isto é, o perfil da empresa a médio/longo prazo, é um exercício algo especulativo. Este trabalho pode ser feito traçando um perfil semelhante ao do diagnóstico, marcando para cada questão o ponto em que se pretende vir a estar, ou que se entende ser a inevitável sequência das tendências e evoluções dos mercados no ambiente empresarial em geral. Perspectivamos assim o que, em nosso entender, deveria ser o diagnóstico da empresa daqui a alguns anos (3 a 5 anos são prazos comuns). Obviamente, quanto maior for o período mais especulativo se torna o exercício.

A comparação dos perfis torna possível identificar claramente os aspectos da situação presente que carecem de maior evolução e que portanto deverão receber particular atenção, permitindo estabelecer metas objectivas.

É importante que essa visão seja realista e alcançável: não será viável, no prazo definido, fixar para a empresa e o seu ambiente externo um posicionamento óptimo em todas as questões. Dizer que se tem de melhorar em tudo é fácil, mas fazê-lo é muito improvável. Enquanto uma acção focalizada pode ter um sucesso rápido, uma acção demasiado abrangente conduz por vezes a pequenos avanços em várias direcções, sem que nenhum seja particularmente relevante.

O benchmarking pode auxiliar a definir esta visão do futuro, permitindo estabelecer um cenário que se sabe ser realizável. Numa primeira fase, a empresa deverá evoluir da situação actual para a situação nesse momento considerada “ideal”, isto é, aquela que se identifica com o modelo. Daí poderá evoluir por caminhos próprios.

 

Plano de acção

 

“Pensas que se compreendes UM, compreendes DOIS, porque UM MAIS UM são DOIS. No entanto, também tens de compreender MAIS.”
Provérbio Sufi

 

A elaboração de um plano de acção pode ser feita a partir da identificação das áreas do diagnóstico que é necessário fazer evoluir da posição actual para a visão de futuro. Em relação a cada uma, segue-se a sequência descrita na figura 3.1: 

 

·         geração de ideias para acções que contribuam para a evolução pretendida;

·         análise das várias ideias; 

·         selecção das acções a implementar; 

·         execução dessas acções.

 

Uma técnica interessante, utilizável na geração de ideias para um plano de acção, é a análise de um diagrama de forças (FFA , do inglês force field analysis), descrita no ponto 3.7.

O plano de acção dará origem a uma carteira de projectos. O planeamento e gestão de projectos é abordado no ponto 3.5.

 

Reengenharia de processos

 

“Não há êxtase como o de criar algo novo”.
Cesare Pavese

 

Uma análise do tipo BPR radical começa por questionar a própria essência da empresa: 

 

·         Os nossos produtos são de facto os mais adequados para cumprir as expectativas dos nossos clientes? 

·         Haverá outros produtos, ou outras características, mais apropriados aos interesses dos clientes? 

·         Quais serão os requisitos dos clientes daqui a alguns anos? 

·         A nossa organização é adequada ao tipo de funções que são vitais para nós? 

·         Distinguimos bem as nossas competências nucleares (core competencies), em cuja evolução apostamos fortemente, de outras áreas onde devemos privilegiar o outsourcing

 

Com base nesta análise, questionamos se os processos da empresa são os mais adequados aos objectivos, redesenhando-os.

Por outras palavras, procuramos distanciar-nos daquilo que estamos a fazer e daquilo que somos hoje e concentramo-nos no que faríamos se tivéssemos de organizar tudo a partir do zero.

Esta atitude conduz-nos a um novo projecto (em inglês, redesigning) dos processos empresariais críticos ao nosso negócio, que provavelmente causará mudanças radicais. Uma consequência relativamente óbvia do BPR   é a utilização extensiva dos modernos sistemas de informação (IT , do inglês information technologies), e por isso algumas pessoas referem BPR como um elemento de implementação abrangente da “era da informação” nas empresas. No entanto, a melhoria dos processos não ocorre necessariamente apenas no modo de gerir a informação e comunicação.

É importante notar que a reengenharia de processos pode conduzir a um novo projecto totalmente revolucionário da organização da empresa e suas operações, mas a sua implementação não necessita de ser radical. Provavelmente, isso implicaria custos incomportáveis. Daí que uma  implementação faseada e planeada de acordo com as realidades e interesses da empresa constitua muitas vezes a estratégia mais adequada.

Além disso, a abordagem teórica mais radical (a partir do zero absoluto) é mesmo questionada actualmente, face à situação real da maioria das empresas e aos custos do redesigning (que é uma tarefa de conhecimento intensivo – knowledge intensive –, isto é, que exige vários especialistas experientes). É referido em literatura que cerca de 70% dos BPR com este objectivo radical falharam (Bashein et al., 1994), no essencial por:

 

1.       falta de empenhamento e interesse da administração em implementar os novos processos; 

2.       âmbito e expectativas do trabalho à partida irrealistas;

3.       resistência à mudança e desadaptação tecnológica da administração e quadros técnicos.

 

Há, portanto, várias metodologias possíveis para um trabalho de BPR que equilibram o desenho de uma nova organização “ideal” com a situação real da empresa, isto é, que correspondem a uma perpectiva intermédia à puramente incremental e à exclusivamente radical. O quadro 3.2 apresenta uma metodologia típica.

 


 

 

Quadro 3.2. Exemplo de uma metodologia para um BPR intermédio a uma abordagem incremental e a uma radical.

 

 

Para alcançar um projecto verdadeiramente novo e adequado aos princípios de inovação bem sucedida (e.g. produção orientada para o mercado, facilitação das interacções ajustando expectativas a entregas), um trabalho de BPR deve ter uma filosofia absolutamente essencial: organizar os processos e o trabalho na empresa em torno dos resultados, não das tarefas (isto é, focar nos fins e não nos meios).

 

 

Hammer (1990) discutiu a importância do princípio acima enunciado e sugeriu ainda os seguintes:

 

·         fazer com que quem utiliza um determinado resultado esteja envolvido na sua elaboração pelo menos uma vez (tentar que todos os quadros saibam como se obtém o resultado que precisam e o que esse trabalho implica);

·         inserir o processamento da informação no próprio trabalho que gera essa informação;

·         tratar recursos geograficamente dispersos como se estivessem centralizados (isto é, desprezar o efeito das distâncias – a empresa poderá ser reorganizada para as eliminar ou implementar sistemas de informação e comunicação que minimizem o seu impacto);

·         ligar actividades paralelas em vez de as integrar;

·         colocar o ponto de decisão onde o trabalho é executado e instalar um sistema de controlo do processo para “automatizar” a decisão;

·         obter a informação na fonte que a gera.

 

A utilização extensiva dos sistemas informáticos permitirá definir uma nova abordagem para a coordenação do trabalho na empresa.

No entanto, repensar os processos empresariais focando os resultados em vez de as tarefas tem uma valia evidente e não é obviamente necessário que o novo projecto faça extensivo uso das tecnologias de informação. 

Conforme referido anteriormente, o BPR  tem evoluído nos últimos anos no sentido de englobar o realismo do que é efectivamente exequível no ambiente existente, combinando benefícios incrementais com uma visão abrangente que lhe é própria (Davenport, 1995). Consequentemente, a metodologia sugerida no quadro 3.2. será adequada para a generalidade dos trabalhos de BPR no contexto actual das empresas portuguesas.

© Sociedade Portuguesa de Inovação, 1999
Edição e Produção Editorial: Principia.    Execução Técnica: Cast, Lda.